Relacionar-se com Deus
por Dom Jacinto Bergmann
Arcebispo de Pelotas (RS)
O relacionamento com Deus, dentro de uma visão cristã, não é uma viagem ao fundo de si mesmo. Não é um movimento introspectivo. Não é uma diagnose dos nossos pensamentos e moções externas ou íntimas. O relacionamento cristão com Deus é ser e estar diante de Deus, colocar-se por inteiro e continuamente diante de sua presença, com uma atenção vigilante àquele que nos convida a um diálogo sem censuras. Não é oferecer a Deus alguns pensamentos, mas entregar-lhe todos os pensamentos, tudo o que somos, experimentamos e vivemos.
Jesus de Nazaré, é o verdadeiro Mestre do relacionamento cristão com Deus, quer porque o seu relacionamento é modelo de todo o relacionamento com Deus, quer porque ele nos ensina a relacionar-se com Deus com toda a verdade. A parábola que Jesus de Nazaré conta e está descrita no Evangelho de Lucas, capítulo 18, versículos 9 a 14, é um importante ensinamento do autêntico relacionamento com Deus: “Dois homens subiram ao templo para orar. Um era fariseu, o outro publicano. O fariseu, de pé, orava assim em seu Íntimo: ‘Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e pago o dizimo de toda a minha renda’. O publicano, porém, ficou a distância e nem se atrevia a levantar os olhos para o céu; mas batia no peito, dizendo: ‘Meu Deus, tem compaixão de mim, que sou pecador!’ Eu vos digo: este último voltou para casa justificado, mas o outro não. Pois quem se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado”.
Podemos relacionar-nos com Deus como o fariseu da parábola. O vocativo inicial, “Deus”, confere às suas palavras uma cadência solene e retórica. O seu relacionamento com Deus é um autoreferenciado: ouve-se o “eu”, “eu”, “eu” por toda parte. O motivo de louvor que se encontra é a diferenciação em face dos outros, que são isto e aquilo: ladrões, adúlteros, injustos, que são, sobretudo como aquele publicano que está atrás dele no templo. Ele é um bom “praticante” que se contempla a si mesmo, deslumbrado com as suas obras, que, no relacionamento dele com Deus não tem nenhum caráter penitencial ou de súplica.
Enquanto o fariseu faz uso do espaço sem grandes preocupações nem pruridos (ele está simplesmente de pé e fala, fala muito), o publicano distingue o próximo e o distante, o alto e baixo, o corpo e a palavra: ele se sente “longe”, não ousa erguer o olhar e bate no peito enquanto profere algumas escassas palavras. Tem consciência daquilo que o afasta. Desloca-se não no eixo horizontal, mas no vertical. Ele não finge uma proximidade que não existe. Mas mostra-se assim, tal qual, a Deus. Quando, no relacionamento com Deus, ele se identifica como “o pecador”, isso não é mero artifício do discurso, mas corresponde a uma verdade existencial que a intensidade simbólica da sua atitude corporal vibrantemente corrobora.
O ponto espiritual de viragem da parábola é esta atitude de verdade do publicano, em significativo contraste com a do fariseu. Ele faz convergir para Deus toda a sua vida, o seu bloqueio, as suas lágrimas, o seu desespero. Ele se coloca completamente na dependência de Deus. Que Deus faça! Que Deus tenha misericórdia! Relacionar-se com Deus, outra coisa não é, que expor-se a Deus, sem máscaras nem véus, nem falsas virtudes, nem diferenciações. É expor tudo! Expor até a própria impossibilidade de relacionar-se com Ele.