A Insatisfação Perene:  “Madame Bovary”, a Era das Redes Sociais e a Santidade  ao Pé da Porta
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A insatisfação humana, um tema atemporal e universal, encontra expressão eloquente na literatura clássica e reverbera nas dinâmicas contemporâneas da era das redes sociais. “Madame Bovary”, 1856, de Gustave Flaubert, explora a insatisfação crônica de sua protagonista, Emma Bovary, com sua existência ordinária e sua busca desesperada por um ideal romântico inatingível. Esta obra não apenas captura a essência da condição humana em sua época, mas também prenuncia a insatisfação perene vivenciada por muitos na era digital atual.
Emma Bovary, a protagonista de Flaubert, personifica a luta interna contra a mediocridade da vida cotidiana e a constante busca por uma existência que corresponda às suas idealizações românticas. A insatisfação de Emma decorre de suas expectativas desproporcionais, alimentadas por leituras românticas, que a levam a desprezar a vida que leva ao lado do marido, Charles Bovary, um médico de aldeia. Essa busca incessante por escapismo através de aventuras amorosas e luxos imprudentes culmina em sua ruína financeira e emocional, ilustrando as consequências trágicas da insatisfação perpetuada por ilusões irrealistas. A experiência de Emma espelha a condição humana moderna, onde as representações idealizadas da vida, muitas vezes veiculadas pelas redes sociais, provocam uma insatisfação comparável.
As redes sociais têm ampliado significativamente o fenômeno da insatisfação com a vida real. Plataformas como Instagram, Youtube, TikTok, Facebook, entre tantos, apresentam uma realidade filtrada e embelezada, onde os momentos de alegria são sobrerepresentados, criando uma percepção distorcida da vida alheia, ou seja, escondem os “bastidores” da existência. Esse constante confronto com vidas aparentemente perfeitas pode exacerbar sentimentos de inadequação, fracasso, inveja e insatisfação.
O impacto das redes sociais na saúde mental, especialmente entre os jovens, é uma preocupação crescente para pesquisadores, educadores, profissionais de saúde e padres, como diretores espirituais. Jovens, em particular, são vulneráveis à tendência de comparar seus próprios momentos de baixa com os altos retratados por seus pares online (youtubers, gurus virtuais, influencers…), levando a sentimentos de inadequação e baixa autoestima. A constante exposição a esses ideais inatingíveis resulta em um ciclo vicioso de comparação e insatisfação, semelhante ao que vivenciou Emma Bovary.
As redes sociais são palco de uma busca constante por validação através de curtidas, comentários e compartilhamentos. Para muitos jovens, a quantidade de aprovação recebida online torna-se um barômetro de seu valor próprio, onde a falta de reconhecimento pode levar a: sentimentos de rejeição e exclusão; a automutilação, como forma de lidar com a dor emocional intensa, usando esse mecanismo de alívio temporário para sua angústia psicológica, agravada pela dinâmica tóxica das redes sociais; a hiperconectividade e o medo de perder algo (“FOMO” – Fear of Missing Out) contribuem para um estado de vigilância constante e preocupação, levando a um ciclo vicioso de ansiedade; a exposição prolongada a ambientes online tóxicos, onde a comparação e a competição são intensas, pode desencadear ou agravar quadros de depressão; sentimentos de desesperança e desinteresse pelas atividades diárias, perdendo o prazer em hobbies e interações que antes lhes traziam alegria; e, em casos extremos, a deterioração da saúde mental levando a pensamentos suicidas. A percepção de isolamento, combinada com o acesso aos conteúdos que podem glorificar ou banalizar o suicídio, aumentam muito esse risco.
A correlação entre o uso excessivo das redes sociais e o aumento de transtornos mentais entre os jovens exige uma resposta multifacetada. É crucial promover a conscientização sobre os riscos associados ao uso desmedido dessas plataformas e incentivar a adoção de hábitos online saudáveis. Educação sobre higiene digital, campanhas de sensibilização sobre os efeitos das redes sociais na saúde mental e a promoção de espaços de discussão sobre autoestima e valor próprio podem contribuir para mitigar os impactos negativos. Além disso, o acesso a serviços de apoio psicológico e terapêutico é fundamental para jovens em risco, oferecendo ferramentas para o desenvolvimento de resiliência emocional e estratégias saudáveis. Reconhecendo e abordando as causas subjacentes, é possível construir um ambiente digital mais saudável e seguro para a juventude.
Contudo, contra a maré da insatisfação alimentada por ilusões, a santidade no cotidiano emerge como o grande remédio, pois traz uma prática de reconhecimento e valorização das alegrias simples e genuínas da vida diária, frutos da Bondade Divina. Esse conceito sugere uma abordagem mais consciente e agradecida da realidade, focando no presente e nas pequenas bênçãos que frequentemente passam despercebidas. A santidade no cotidiano propõe uma aceitação da vida como ela é, cultivando gratidão e presença em vez de anseio por uma realidade alternativa ou virtual: “Gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir. Nesta constância de continuar a caminhar dia após dia, vejo a santidade da Igreja militante. Esta é muitas vezes a santidade «ao pé da porta», daqueles que vivem perto de nós e são um reflexo da presença de Deus, ou – por outras palavras – da «classe média da santidade»” (Papa Francisco: Gaudete et exsultate, n.7).
A análise da insatisfação perene, desde a perspectiva literária de “Madame Bovary” até as manifestações na era das redes sociais, revela um desafio constante da condição humana: a busca por satisfação em meio a expectativas muitas vezes irrealistas. A santidade “ao pé da porta” surge como uma resposta poderosa a esse dilema, oferecendo um caminho para a apreciação genuína da vida em suas formas mais simples e autênticas: “A coisa mais extraordináriado mundo é um homem comum, uma mulher comum e seus filhos comuns” (G.K.Chesterton. Tremendas Trivialidades). Ao cultivar uma percepção mais agradecida e presente, podemos encontrar um antídoto para a insatisfação crônica e, possivelmente, uma forma de viver plena e satisfatoriamente.
Termino com um apelo aos meus irmãos sacerdotes e para as demais lideranças da Igreja, para que muitos jovens não tenham o mesmo destino trágico de Emma Bovary: Acordemos para tal situação!