O Constrangimento para Fazer o Bem: A Conversão de Jean Valjean por Causa do Bispo de Digne em “Os Miseráveis”
por Pe. Enéas de Camargo Bête – Pároco da
Paróquia Sagrada Família
A literatura frequentemente aborda a temática da redenção e da transformação moral de seus personagens. Um exemplo marcante é a obra “Os Miseráveis” (1862), de Victor Hugo, em que a conversão do protagonista Jean Valjean é desencadeada pelo ato de bondade e generosidade do Bispo de Digne.
Valjean é inicialmente apresentado como um ex-presidiário que, após cumprir uma longa pena por roubar um pão para alimentar sua família, enfrenta a rejeição e a marginalização da sociedade. Esse ambiente hostil o leva a adotar uma postura endurecida em relação à humanidade.
No momento crucial da narrativa, Valjean rouba talheres de prata do Bispo Myriel. Esta cena marca um ponto de virada na vida de Valjean. Apesar do roubo, quando Valjean é capturado e levado de volta à casa do bispo pela polícia, o Bispo Myriel demonstra uma extraordinária compaixão e misericórdia. Ele diz à polícia que os talheres de prata foi um presente dado a Valjean, e ainda dá a ele dois castiçais de prata, aumentando a generosidade do “presente”. Este ato de bondade tem um impacto profundo em Valjean, influenciando suas ações pelo resto de sua vida.
A reação de Valjean diante da bondade do Bispo revela uma ambivalência interna. Por um lado, ele se sente constrangido e envergonhado por sua conduta anterior, reconhecendo a discrepância entre suas ações e o exemplo de amor e misericórdia do Bispo. Por outro lado, essa experiência desperta nele um desejo genuíno de mudança e uma vontade de retribuir o bem recebido.
A partir desse momento, Valjean se empenha em se tornar uma pessoa melhor e fazer o bem aos outros. Ele inicia sua jornada de redenção em Montreuil-sur-Mer, uma pequena cidade onde ele estabelece uma fábrica e implementa práticas de trabalho inovadoras e justas. Sua administração não só revitaliza a economia local, mas também melhora significativamente as condições de vida dos trabalhadores. Sua reputação como um homem justo e caridoso cresce, e ele é eventualmente eleito prefeito da cidade.
A transformação de Valjean não se limita ao sucesso empresarial e ao status social. Internamente, ele se dedica a viver uma vida de sacrifício e serviço aos outros, honrando sua promessa ao Bispo Myriel. Ele intervém em várias situações para ajudar pessoas em dificuldade, muitas vezes colocando sua própria segurança em risco. Um exemplo notável é sua interação com Fantine, uma trabalhadora de sua fábrica que caiu em desgraça. Ao descobrir a situação desesperadora de Fantine e sua filha, Cosette, Valjean se compromete a cuidar da menina, uma promessa que ele cumpre com grande dedicação e amor.
O paralelo entre a experiência de Valjean e o conceito do constrangimento para fazer o bem revela uma reflexão profunda sobre a natureza humana e a possibilidade de redenção. Ao apresentar um personagem que encontra a inspiração e a motivação para se tornar uma pessoa melhor através de um ato de generosidade, Victor Hugo ressalta a importância do amor e do perdão na transformação espiritual e moral.
A história de Jean Valjean em “Os Miseráveis” nos leva a refletir sobre a capacidade do ser humano de se redimir e mudar sua trajetória de vida. Através do paralelo com o conceito do constrangimento para fazer o bem, percebemos que a experiência de receber generosidade e perdão incondicional pode desencadear uma profunda transformação. Assim como Valjean, somos confrontados com a ambivalência interna entre nossas ações passadas e a aspiração de nos tornarmos melhores seres humanos e, mais ainda, santos.
Assim como Valjean sentiu-se constrangido pelo ato de bondade do Bispo de Digne, o amor de Cristo também nos constrange (cf. 2Cor 5,14). O sacrifício supremo de Jesus na cruz revela o amor incondicional de Deus pela humanidade e a extensão desse amor a todos os indivíduos, independentemente de sua condição ou pecados passados. Esse amor nos constrange porque nos confronta com a nossa própria imperfeição e pecaminosidade, levando-nos a reconhecer nossa necessidade de redenção.
Disso resulta na real compreensão do que é santidade, não meramente como atos morais, que é importante, mas como consequência, do sentir-se amado por Deus. O santo, pois, é aquele que entende a sua miséria e se vê profundamente constrangido pelo amor de Deus por nós em Jesus Cristo na cruz, de forma que, muda o rumo de sua vida espiritual e moral: “E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou”(2Cor 5,15); ou ainda: “Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna”(2Cor 5,15); a pergunta é crer no quê? Na doutrina? Na Bíblia? Na Liturgia? Sim, mas acima de tudo que Deus nos ama: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo (…) Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1Jo 4, 10), agora o amor já não é apenas um «mandamento», mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro” (Papa Bento XVI. Carta Encíclica Deus Caritas Est,n.1).