O Senhor das Moscas e o Bode Expiatório
por Pe. Enéas de Camargo Bête
Pároco da Paróquia Sagrada Família
Seria válida a hipótese de Jean-Jacques Rousseau, de que nascemos bons (bom selvagem) e que a sociedade nos corrompe? Seria mesmo a infância sinônimo de inocência, isto é, as crianças não seriam necessariamente más? Será que uma criança educada com os requintes de cultura estaria permanentemente livre de qualquer comportamento animal?
Em “O Senhor das Moscas” (1954), primeiro e mais conhecido romance de William Golding, trinta meninos são os únicos a se salvar de uma queda de um avião em que morrem todos os adultos. Enquanto tratam de sobreviver nessas condições, não tardam a criar dois grupos com os respectivos líderes. Ralph torna-se o cabeça dos que se dispõem a construir refúgios e dedicar-se à colheita, enquanto Jack se converte no chefe dos caçadores, animados por um espírito mais aventureiro. As tensões entre os bandos desembocam em enfrentamento. À medida que o tempo passa, as crianças perdem gradualmente a ordem e a civilidade, entregando-se aos seus instintos mais primitivos. O livro retrata a descida à selvageria e a perda da inocência, sugerindo que, sem a influência de valores morais estabelecidos, os seres humanos podem se tornar animalescos.
Esse retrato da natureza humana em “O Senhor das Moscas” pode ser relacionado ao conceito do Pecado Original na tradição cristã. De acordo com essa crença, o pecado cometido por Adão e Eva no Jardim do Éden resultou na queda da humanidade, levando à corrupção da natureza humana. O pecado original representa a inclinação humana para o mal e a necessidade de redenção. Da mesma forma, os personagens em “O Senhor das Moscas” experimentam uma queda moral à medida que se afastam da civilidade e sucumbem aos instintos primitivos.
Em “O Senhor das Moscas”, vemos a necessidade de responsabilidade e da busca pela justiça como elementos cruciais para combater a queda humana. Embora os personagens sucumbam à barbárie, há também a presença de personagens como Ralph e Simon, que lutam para manter a moralidade e a ordem. Esses personagens representam a esperança de redenção e a possibilidade de superar a natureza humana corrompida.
O filósofo e crítico literário francês René Girard argumentava que os seres humanos são essencialmente miméticos, ou seja, nós aprendemos e desejamos copiando os outros, levando frequentemente a conflitos e rivalidades. Ele argumenta que, em sociedades primitivas, quando as rivalidades e os conflitos ameaçavam destruir a comunidade, um membro era frequentemente escolhido para ser o “bode expiatório” – uma pessoa ou grupo de pessoas culpadas por todos os problemas da sociedade. Este bode expiatório era então expulso ou morto, restaurando a paz temporária na comunidade.
A conexão com “O Senhor das Moscas” de William Golding é interessante, pois o livro explora temas semelhantes de conflito, violência e o potencial para o mal dentro da natureza humana. Na história, o grupo de meninos se volta para a violência e o caos, destacando a fina linha entre a civilização e a barbárie. O personagem de Simon, em particular, pode ser visto como uma figura de bode expiatório, já que ele é mal interpretado e finalmente morto pelos outros meninos em um frenesi violento.
O livro de Levítico cap.16 descreve o ritual do Dia da Expiação, onde dois bodes eram apresentados perante o sumo sacerdote. Um era sacrificado, e o outro era o bode expiatório, enviado ao deserto após ter os pecados do povo simbolicamente colocados sobre ele. O bode expiatório simbolizava a remoção e o perdão dos pecados, carregando as transgressões da comunidade para longe, para o deserto.
Na teologia cristã, a redenção é alcançada por meio de Jesus Cristo, que, como o Filho de Deus, oferece a salvação da condição decaída da humanidade. Através de sua morte sacrificial na cruz, Cristo carregou os pecados do mundo e abriu o caminho para a reconciliação com Deus. A redenção em Cristo não apenas oferece o perdão dos pecados, mas também a transformação interior e a restauração da comunhão com Deus.
Embora “O Senhor das Moscas” não apresente explicitamente uma figura redentora como Cristo, podemos encontrar paralelos simbólicos. Assim como Simon representa um elemento de bondade e busca pela verdade, sua morte trágica pode ser interpretada como um chamado à reflexão e à redenção dos personagens restantes. Essa redenção ocorre quando eles reconhecem sua própria queda e se voltam para uma mudança de coração e uma busca por uma ordem moral superior.
Ao aprofundar o paralelo entre “O Senhor das Moscas”, o Pecado Original e a redenção em Cristo, podemos perceber como essas narrativas se entrelaçam. O romance de Golding retrata a realidade do Pecado Original e a queda da natureza humana, enquanto a fé cristã oferece a resposta à necessidade de redenção e restauração. A vinda de Cristo, seu sacrifício redentor, como bode expiatório, e o chamado à transformação pessoal refletem a busca pela superação da natureza decaída e a santidade.