Páscoa da vida
Páscoa! Celebrada há séculos pelos cristãos e judeus! A maior de todas as festas! Festa da vida e da liberdade! Do triunfo sobre a escravidão e a morte! Passagem que ressignifica e liberta nossa história! Memória, presente e futuro! Celebração que sintetiza toda a essência da nossa humanidade e nos leva adiante.
É importante descobrir a Páscoa que transborda a mera tradição ritualística. O rito, quando deslocado da vida, corre o risco de se tornar mera repetição. Conforme a tradição, judeus sentam-se à mesa para comer o cordeiro, o matzá (pão sem fermento); o maror (erva amarga), o charósset (pasta de maçã) e beber os quatro cálices de vinho. Já os cristãos celebram a Vigília Solene com a bênção do fogo e da água, a proclamação das leituras, a celebração do Rito Eucarístico. Tudo acompanhado de belíssimos cantos e bastante incenso. Estejamos atentos! Aquilo que é antigo pode restringir a memória a um conjunto de preceitos e fórmulas habituais. Refiro-me ao perigo de celebrarmos a Páscoa numa perspectiva meramente exterior, sem nenhuma ressonância interna, como também eclesial e social.
Por mais que nos esforcemos, jamais seremos capazes de compreender o mistério insondável que essa festa encerra.
Como crianças, é melhor provar da curiosidade atrevida pelo mistério que incita, do que tentar aprisioná-lo em nossos limitados conceitos. Páscoa não se explica, se experimenta. Páscoa é Dom Divino. E tudo o que é de Deus supera sobejamente o nosso entendimento. Permitamo-nos mergulhar nas profundezas das águas cristalinas do amor que jorra da fonte do coração de um Deus que deseja vida plena para todos. Ali, no peito aberto de Jesus na cruz, descobriremos que o Ressuscitado é também o Crucificado.
A Páscoa dos judeus e a Páscoa dos cristãos têm a Ceia Sagrada em comum. A primeira evoca o mandato de Deus para que cada família sacrifique um cordeiro de um ano e sem defeito, para comê-lo às pressas, com rins cingidos. O sangue do cordeiro estampado na porta das casas era como uma chancela garantidora da vida. Deveria nutrir o corpo e a alma daquele povo para a longa jornada que estava por vir. Era, também, um prenúncio da vitória final. A segunda Páscoa, a dos cristãos, recorda aquela última ceia de Jesus com os seus discípulos. Ele instaura a memória da entrega do seu Corpo como expressão máxima do seu amor salvífico, que culmina com a sua morte na cruz. O sacrifício do Cordeiro na Cruz assinalou a nova e eterna Aliança de Deus com a humanidade, penhor da Vida Plena prometida. Da Vida Ressuscitada. Da Vida a ser comungada. E seguida!
O teólogo espanhol José M. Castillo faz uma importante distinção entre sacrifício “ritual” e sacrifício “existencial”. Não obstante a importância dos nossos ritos litúrgicos para a vivência da fé, precisamos comprometer toda a nossa vida no seguimento de Jesus, esforçando-nos para adorar Deus em Espírito e verdade. Quem acredita neste tipo de sacrifício e o põe em prática centra toda a sua vida e sua busca de Deus em sua própria existência. Nesse sentido, trata-se de trazer a memória da Páscoa do Senhor para o conjunto e totalidade de sua vida: sua conduta, seus critérios, suas convicções, sua forma de viver em todas as suas dimensões.
Como nos tempos de Moisés, Deus continua “a ver a miséria do seu povo e a ouvir seu grito por causa de seus opressores. Ele conhece as suas angústias e desce para libertá-lo e fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel” (Ex 3,7-8). Escutemos o que Ele nos fala através da sarça que arde no fogo do nosso coração sem jamais se consumir. Estejamos também atentos às Bem-Aventuranças e às exigências que Jesus faz àqueles que desejam segui-lo: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34). Mais do que tornar próprias as convicções da fé, o que importa na vida cristã é o seguimento de Jesus. Não há vida nova sem cruz. Nem Páscoa sem seguimento.
Seguir Jesus no caminho da sua Páscoa não significa outra coisa senão vincular a própria vida ao seu projeto de vida. O Filho do Homem foi radicalmente livre e dedicou sua existência terrena no resgate da nossa humanidade integral, na inteireza de nossa história e da nossa sociedade. “Humanidade em pé de igualdade para todos: ao nível do respeito, da dignidade, dos direitos, de bem-estar universais” (José M. Castillo). Essa é a verdadeira Páscoa!
Faço votos para que a celebração anual da Páscoa encontre ressonância em todas as dimensões da nossa vida pessoal, familiar, comunitária e social. E que a passagem do Senhor nos comprometa a trilharmos um novo caminho, escrevermos uma nova história e vivermos uma nova vida, liberta e ressuscitada, como deve ser!
Desejo a todos uma Santa e Feliz Páscoa da Vida!
Dom Arnaldo Carvalheiro Neto
Bispo Diocesano de Jundiaí