A palavra como veículo de fraternidade, não de ódio
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A convivência fraterna precisa ser buscada e não se conhece melhor instrumento para isso que a palavra. É claro que ações concretas surtem efeitos e são necessárias, mas mesmo estas devem ser precedidas de palavras. A quadra histórica que vivemos está marcada pelo discurso de ódio – que, ironicamente, reforça a ideia do poder da palavra -, pelo rechaço violento do irmão que pensa diferente, pela forjadura e a disseminação de mentiras. Trata-se de uma guerra fratricida criada em nome da busca pelo poder, que vai arrastando incautos para sua jornada cruel.

A lucidez e a percepção temporal do Papa Francisco captaram o uso recorrente da palavra como veículo de ódio, em substituição ao seu papel como difusora do amor fraterno, como ferramenta de aproximação entre pessoas cujos credos, raças e ideologias são diferentes, mas que se encontram no mesmo patamar diante do amor divino. Somos todos irmãos e como irmãos deveríamos conviver, daí a encíclica papal Fratelli Tutti.

Todo destaque midiático e pronunciamentos de indignação serão pouco para repudiar o assassinato a facadas de um homem por outro, como vimos há poucos dias em Confresa-MT, motivado por antagonismo político-partidário. Por que tentar impor crenças ao próximo e, quando esse empenho revela-se inglório, tirar lhe a vida?

Vê-se o ódio sobrepor-se ao amor, a intolerância derrotar o respeito.

Na Fratelli Tutti, o Papa lembra que São Francisco de Assis “não se envolveu na guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicou o amor de Deus. Ele despertou o sonho de uma sociedade fraterna”. E é da Oração de São Francisco que extraímos a mais contundente mensagem sobre uso da palavra como arma do amor: “Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz. Onde houver ódio, que eu leve o amor. Onde houver ofensa, que eu leve o perdão. Onde houver discórdia, que eu leve a união. Onde houver dúvida, que eu leve a fé. Onde houver erro, que eu leve a verdade. Onde houver desespero, que eu leve a esperança. Onde houver tristeza, que eu leve a alegria. Onde houver trevas, que eu leve a luz!”

O acirramento dos ânimos comum aos períodos eleitorais não pode nos distanciar da mensagem de fraternidade contida na Fratelli Tutti e no exemplo de abnegação de São Francisco. Tampouco pode nos obnubilar a visão diante das profundas injustiças sociais que nos afligem desde sempre e que, provavelmente, não desaparecerão após o pleito eleitoral, como num passe de mágica.

Os candidatos permanecem no terreno do discurso predominantemente populista e demagógico, sem discutir com profundidade projetos para superação dos graves problemas que afligem nosso povo. É tarefa cidadã e cristã denunciar essa triste realidade, como fez a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil na Mensagem da CNBB ao Povo Brasileiro sobre o Momento Atual, por ocasião de sua 59ª Assembleia Geral, em Aparecida.

Claro e cristalino, eis um trecho da mensagem da CNBB: “Vítimas de uma economia que mata, celebramos as conquistas desses 200 anos de independência conscientes de que condições de vida digna para todos ainda constituem um grande desafio. É necessário o compromisso autêntico com a verdade, com a promoção de políticas de Estado capazes de contribuir de forma efetiva para a diminuição das desigualdades, a superação da violência e a ampliação ao acesso a teto, trabalho e terra. Comprometidos com essas conquistas e inspirados pela cultura do diálogo e do encontro, podemos ser uma nação realmente independente e soberana”.

Não escapa a nós, bispos brasileiros, o impacto destrutivo que a mentira – sob a forma de fake news – exerce sobre a democracia, bem como a escravização mental de fieis com fins eleitorais: “É motivo de preocupação a manipulação religiosa e a disseminação de fake news que têm o poder de desestruturar a harmonia entre pessoas, povos e culturas, colocando em risco a democracia. A manipulação religiosa, protagonizada por políticos e religiosos, desvirtua os valores do Evangelho e tira o foco dos reais problemas que necessitam ser debatidos e enfrentados em nosso Brasil. É fundamental um compromisso autêntico com o Evangelho e com a verdade”.

Mãos à obra, fratelli, para que a palavra passe a nos unir em Deus e não mais nos dividir!

Dom Arnaldo Carvalheiro Neto
Bispo diocesano de Jundiaí