Pina
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Ó anjos celestes que a Cristo adorais. Dizei-Lhe, cantando: bendito sejais! Dizei-Lhe, cantando: bendito sejais!

Toda vez que me lembro desse canto – porque não o ouço mais – vejo duas irmãs revezando-se com Frei Alípio na direção da hora santa mensal da Ordem Terceira de São Francisco, no terceiro domingo do mês, na igreja de São Benedito. Naquela época aquela irmandade era numerosa e dinâmica, graças em grande parte ao empenho e abnegação daquelas mulheres, cuja última representante desapareceu no último dia 3 de abril…

Domingo da Paixão do Senhor, também dito Domingo dos Passos porque outrora nele se fazia a procissão hoje transferida para o domingo seguinte, o de Ramos. O dia começou com a triste notícia do falecimento de Luíza Gandra Bertani, aos 98 anos. Pina, como era conhecida, havia sofrido um AVC oito dias antes, no asilo onde morava desde março de 2020. Malgrado sua idade avançada, foi para lá pra ficar um mês, que depois se tornaram dois, até estender-se por pouco mais de dois anos, sendo mais uma vítima, não do vírus, mas do isolamento que fez sucumbir tantos e tantos idosos privados de seus parentes, amigos, da igreja e da vida ativa que levavam.

Quer os Passos fossem num domingo ou noutro, lá estava Pina, com sua irmã Judite, a enfeitarem os andores para a procissão, missão que cumpriram por décadas até recentemente quando, vendo com que dificuldade já a desempenhavam, as convenci a passarem o bastão a outrem. E não era só para os Passos que se dedicavam. Ainda na Semana Santa, e agora com a irmã Rute, enfeitavam os andores da sexta-feira na Matriz, do Senhor Morto e de Nossa Senhora das Dores, e da Procissão do Encontro, no Domingo de Páscoa de madrugada. Como ficava bonito o esquive de Nosso Senhor, repleto de orquídeas coloridas cujo perfume de longe se sentia! Além de, é claro, vestirem o “coisa ruim de Zico”, como chamavam os bonecos de Judas Iscariotes e de Satanás que o irmão Zico por muitos anos montou para ser estourado na Páscoa, no Largo da Matriz.

Pina foi catequista no Carmo, cantora dos coros do Carmo, da Candelária e do Patrocínio, irmã de São Benedito e Ministra da Ordem Terceira de São Francisco. Não media esforços em ajudar onde fosse preciso, dentro ou fora da igreja. Sua vida foi de total – sim, total – dedicação a Deus e ao próximo.

Mas duas características mais me chamavam a atenção nela: a simplicidade e a alegria. Frequentar a sua casa era sempre oportunidade de longas, edificantes e, por que não dizer, divertidas conversas. Seu aniversário, em fevereiro, assim como de sua irmã Judite, eram verdadeiros acontecimentos. Chamavam a cidade inteira! Era tanta gente naquelas salas e corredorzinhos estreitos, de chão de tijolo e telha-vã, que mal se podia andar. E ali se operava a multiplicação dos salgados, tortas, do bolo e da cocadinha branca que faziam como ninguém. E em meio àquele furdúncio rezavam, cantavam, declamavam e faziam a festa, em companhia de tantos amigos que as queriam tão bem.

Pessoalmente, tinha Pina como se da minha família fosse. Ela e seus irmãos. Acho que essa afinidade vem de longe, de quando minha bisavó Tereza morava vizinho delas, na casa em que minha mãe nasceu e passou a infância. Como me foi doída sua partida! Como assim? Pina não está mais lá em sua casinha na rua do Patrocínio, com as portas fechadas só no trinco? Não está mais na Matriz? Nem no São Benedito? Então estaria no Patrocínio, a duas quadras de sua casa? Também não! Pina não está mais entre nós…

Depois do golpe que sofreu com a morte de Judite, em julho de 2019, situação que, contudo, enfrentou com a serenidade de uma mulher de fé e que sabia perfeitamente por que veio ao mundo, visitei-a pela última vez ao final daquele ano, encontrando-a sentada à sua máquina de costura, “fazendo um ou outro servicinho pra passar o tempo”. Ficou feliz, como sempre, pedindo que voltasse sempre, perguntando como ia a vida fora de Itu, do restante da família, das crianças de que gostava tanto. Uma oportunidade surgiu-me de um novo encontro em janeiro deste ano, mas um pequeno resfriado, por cautela, me fez evitar estar com ela. Gravamos então uma mensagem no celular e mandamos a ela que ficou feliz e gravou outra de volta…

Na Semana Santa deste ano Pina não vai enfeitar nenhum andor de nossas procissões, de nossas igrejas, nem cantar em nenhuma cerimônia ou procissão. Mas com seus irmãos Zico, Branca, Rute, Antenor e Judite, vai sim enfeitar os pés de Jesus e Maria lá no céu, com a alegria e piedade que sempre marcaram sua longa existência. E em companhia dos anjos prosseguir com a canção de sua vida: Vós, outros, remidos, ditosos mortais. Dizei, igualmente: bendito sejais! Dizei igualmente: bendito sejais!