Varandaí, lembram-se?
Para quem leu o Conto de Natal, recente portanto, voltam aqui outros casos, corriqueiros e comuns dessas pequenas e esquecidas cidades deste Brasil imenso. Algo típico e corriqueiro.
Varandaí, lembram-se?
Pelo menos duas vezes por semana, às vezes três, numa das esquinas do centro, era fatal o encontro do seu Zico sapateiro com o Berto, funcionário aposentado da Prefeitura.
Sabiam de tudo porque uma trombada de bicicletas que fosse, corria a pequena cidade em poucos minutos, de boca em boca. Mas tudo numa boa e compreensível, dentro de um modus vivendi típico, quase inocente daquele rincão esquecido.
E, num repente, os dois amigos se cruzam e evidentemente param.
Ofegante, o sapateiro, posta seu braço direito no ombro do amigo, sinal de que vinham muitas novidades. Seu Berto, justamente com hora marcada no dentista, sequer revelaria essa premência, afeitos um e outro ao máximo de consideração recíproca.
Então fala seu Zico:
– Antes de ontem, o sono caíra tão bem que, muito mal abri os olhos fechei-os de novo. Quis desfrutar da cama macia mais um pouquinho. Dei-me à fraqueza de cogitar de um repouso alongado, mas, barbaridade! Havia programado deixar o carro para revisão às sete em ponto!
Eram oito e quinze.
A essa altura, amigos de todas as horas, seu Berto se conformou com a muito provável perda em relação ao dentista.
Seu Zico, de novo:
– Tomei uma xícara de café com duas bolachas e pensei em terminar depois. Também nem chegara a ser um sacrifício.
E assim continuou seu Zico seu relato.
Uma vez na rua ele dera andamento aos compromissos e necessidades do dia.
Visita ao Banco, compra de produtos de limpeza. Em verdade, quase à hora do almoço, percebera já que os encargos pediam horário ainda vasto.
Ao voltar para casa, dona Vetusta indaga:
– E a carne que lhe pedi, você trouxe?
Foi aí que ele se sentou, como já a se defender das prováveis investidas da consorte. Com sorte, imaginem não fosse.
Seu Zico se sentou e na mesma hora pôs-se em pé:
– Estou indo como avião ao açougue e trago aqueles croquetes semiprontos.
De fato, fora um pé lá e outro cá. Retornou com ares triunfantes a mostrar que a falha fora sanada. Ufa!
Além da revisão do carro, adiada, ficou ainda evidenciado que outros compromissos haveriam de ser reprogramados.
Os idosos, pelo menos os relativamente conservadores e tradicionais, conseguem sim um pouco ao menos, evidenciar a supremacia do ontem, em termos de serenidade e paz. Claro, à evidência mais ainda da incerteza e do por hora incerto do amanhã.
De volta para casa, seu Zico já se aprestava a acomodar-se na poltrona na busca do noticioso do dia, quando soou a campainha.
Era o leitor da luz e força, no seu olá, quase colado ao seu delicado tchau.
Numa virada da prosa de um só, cada um na sua, o afobado Zico e o amigo, este com um pé na soleira da porta, – algo que sequer costumeiro o morador ali estranharia, – prosseguia seu inflamado relato. E tocou numa ferida de ambos, a insignificância do valor das aposentadorias, num Brasil em que nem de esmola mereceria a alcunha.
Essa ocorrência, fatos, aqui resumidos ao extremo, concorreram para que seu Berto, por sua vez, desistisse de ir ao dentista. O nível dessa tênue e ao mesmo tempo espontânea delicadeza, não usara o sr. Berto como desculpa, para safar-se desse incômodo, vocábulo por sinal aqui mal colocado, até porque dessa interrupção, nenhum estremecimento haveria entre eles. Ainda existem afeições dessa ordem, sabia?
Não se fizera ainda, nesta crônica, a citação da esposa do sr. Berto, dona Aurora, também simples e prestativa, tanto que admirada regente do coro da Igreja Matriz.
Na referência anterior, a do Natal, fez-se alusão ao interesse dos moradores nos jogos de futebol. Sim, ambos os esquadrões, Democrata e Itaguaí, não chegaram ainda vez nenhuma além de um bicampeonato. O tri, acalento eterno dos dois confrontantes.
Mas, neste ano, o Itaguaí sai na frente, por trazer feito o bicampeão mais recente.
E um detalhe, Zico e Berto, torcedores antagônicos.
Essa, porém, uma outra história. Quem sabe?