Navegação psicológica e seu horizonte espiritual
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Ouvindo os gritos aflitos no ressoar do universo

por Olga Sodré

Avançando em direção ao alto mar da consciência profunda no rumo traçado pela dinâmica psicológica e pela linguagem simbólica, meu trabalho em psicologia clínica culminou na prática de uma íntima relação compartilhada voltada para o cuidado do outro e encontro mais profundo consigo mesmo, É também pelos símbolos que se pode descerrar as cortinas da espiritualidade.
Nas margens mentais, as correntes psíquicas e o horizonte espiritual permanecem inicialmente ocultos. Contudo, ao serem reconhecidos, seus sinais se transformam em chaves que abrem as barreiras impostas pela razão, pelas defesas e medos. A abertura das comportas da mente permite que deságue a torrente psicológica pela qual podemos chegar ao poço do ser e, em seu fundo, avistar a luz do horizonte espiritual.
Desse modo, o percurso completo de navegação no oceano da consciência corresponde a uma viagem pelo mundo interior até às fronteiras do ser. Em psicoterapia, para que essa viagem psicológica ocorra é necessário estabelecer uma relação sobre bases sólidas e criar um espaço intersubjetivo no qual se desenrola a navegação conjunta em águas profundas.
Algumas pessoas começam esse trabalho, chegam a entrar no navio, mas não conseguem deixar o porto, pois temem largar suas amarras e âncoras. Outros, conseguem deixar a enseada e se arriscar em direção ao alto mar. De fato, essa viagem não é fácil, e pode até ser amedrontadora. Nela, o navegante viaja para o desconhecido, tendo que enfrentar seus próprios monstros interiores. Quando meu trabalho clínico passou a aprofundar a linguagem simbólica, estabeleci uma analogia entre esse tipo de travessia da consciência e a viagem cheia de peripécias e aventuras narrada por Homero, em seu poema sobre a Odisseia do herói Ulisses.
Com base nesta analogia, passei a considerar a viagem interior no universo psicológico como uma odisseia, na qual a relação psicoterapêutica se torna o navio que sustenta o navegante numa travessia em alto mar até seu horizonte espiritual. Essa relação o protege no enfrentamento dos perigos do mar e na descoberta da gênese do sofrimento, favorecendo a compreensão dos significados e o acesso às possibilidades de mudanças psicológicas e à dimensão espiritual.
A experiência compartilhada contribui para a compreensão do problema e para o seu tratamento, ajudando a ultrapassar o estado inicial de fechamento, a ausência ou deficiência de abertura ao outro, as defesas e os obstáculos ao aprofundamento desse processo. Esse tipo de relação terapêutica não apenas fornece subsídios e ampara a travessia psicológica, como também ilumina o desenrolar da narração e a descoberta de seus símbolos. A navegação leva ao desvendamento do sentido dos problemas e adoecimentos, possibilitando a expressão e o movimento criativo de saída dessas situações.
Embora não esteja mais praticando a psicologia clínica, guardei desse trabalho a experiência de ouvir os sons não expressos pelo outro, pela natureza e pelo ressoar silencioso de Deus. Atualmente, chegam aos meus ouvidos os gritos aflitos de tantos brasileiros, a angústia de tantas perdas, de empreendimentos fechados, de destruição de nosso patrimônio natural, social e humano sobre os quais não podemos nos calar.

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