O secularismo  sufocando a tradição
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Um balanço da Semana Santa ituana

Após alguns anos morando fora de Itu e distante das celebrações da nossa Semana Santa, agora de volta ao torrão, tive a triste constatação de que o secularismo que já era bastante evidente havia décadas, parece ter-se acentuado significativamente nos últimos tempos. E isso julgo não ser culpa da famigerada pandemia que muitas vezes é colocada como bode expiatório de todas as mudanças ruins que ocorreram no mundo, ou para camuflar nossa frouxidão espiritual e moral. Essa decadência na Semana Santa ituana, outrora tradicional e concorrida, é sim resultado de uma total indiferença de grande parte do povo ituano que não se orgulha de sua história, das autoridades constituídas que sequer têm interesse de apoiá-la por seu arcabouço cultural, e até do clero da cidade, que, desprovido de quaisquer vínculos com a identidade religiosa local e sem poder contar mais com a importante liderança das irmandades, confrarias ou mesmo de pessoas que a tomem a peito, desleixa de sua organização, relegando-a a um plano secundário.
Se por um lado estive longe das celebrações ituanas durante esse tempo, por outro tive a oportunidade de conhecer e de participar da Semana Santa em outras cidades e regiões igualmente históricas onde, por mais que também afetadas pelo secularismo e indiferença de muitos, se sentia uma espécie de aura diferente, inclusive nas ruas, que remetia aos mistérios que a cristandade celebra nesses dias. Coisa que em Itu não é mais possível notar.
Que fique bem claro aqui que não me refiro às celebrações litúrgicas oficiais tidas nas mais diferentes igrejas da cidade, que ocorrem onde quer que haja uma paróquia e que, ao que parece, foram bastante concorridas – Deus seja louvado! Mas àquelas que foram introduzidas há séculos, muitas vezes pela influência de nossos colonizadores portugueses e espanhóis, e que sempre fizeram a beleza, a tradição e a piedade do nosso povo. São as chamadas celebrações “paralitúrgicas”, que são as procissões, pregações, vigílias, rezas etc.
Algumas cerimônias perderam-se já há décadas, nos anos de 1950 ou 1960, como é o caso da procissão das cinzas no primeiro domingo da quaresma, do triunfo no domingo de ramos, do fogaréu na quarta-feira santa (esta, até antes) e da segunda procissão do enterro na sexta-feira santa, que saía do Carmo tão logo entrasse a da Matriz. A coroação de Nossa Senhora no Carmo, na páscoa, também desapareceu. Mais recentemente perdemos as Três Horas de Agonia, o sermão das sete palavras, que acontecia na igreja do Bom Jesus, e a vigília noturna em nossa Matriz, ambas na sexta-feira maior. Mas ainda permaneceram satisfatoriamente firmes as procissões de passos no Carmo (que passou para o domingo de ramos após o fim da do triunfo), do Senhor Morto na Matriz da Candelária, e a do encontro, na madrugada do domingo de páscoa, também na Matriz. Foi só o que sobrou da riquíssima tradição de uma cidade de mais de 400 anos!
As procissões do Senhor Morto e do encontro do Senhor Ressuscitado com Nossa Senhora da Alegria sofreram duro golpe com o fim das irmandades da Candelária, em especial da irmandade do Santíssimo Sacramento, que durante séculos e até o início dos anos 2000 era a promotora oficial da Semana Santa na paróquia. As infindáveis filas de irmãos, que inclusive possuem precedência na liturgia, com suas opas cor-de-vinho e elegantes tocheiros, davam uma nota muito solene às celebrações. Hoje, destruída até mesmo a sala que tinham nas dependências paroquiais, não há seis irmãos para carregar o pálio nas procissões, sequer dois para os imponentes tocheiros de prata. A procissão do enterro, que vi chegando na Matriz quando o esquife do Senhor Morto e o andor de Nossa Senhora das Dores ainda iniciavam seu curso, hoje conta com número reduzido de fiéis, sem filas, sem irmandades nem banda de música. Aquele centro de cidade que outrora era interditado já no final da tarde para facilitar a circulação dos devotos que costumavam visitar e rezar nas três igrejas centrais, hoje não passa do centro de uma sexta-feira qualquer. A procissão do encontro, que sempre foi pouco mais modesta em termos de frequência, reduziu-se a um pequeno aglomerado em torno dos andores, igualmente sem filas, nem irmandades, nem banda.
A procissão de passos pode-se dizer que é hoje a mais “teimosa” em sobreviver. Com a organização assumida pela Congregação Mariana do Carmo desde os anos de 1990, ela ainda preserva o seu formato original, com pouquíssimas alterações e frequência mais ou menos estável. Mas nem por isso deixa de sofrer os efeitos do secularismo. Ela acontece ao final de um domingo no qual, ao longo do dia, qualquer um que percorra as ruas de seu itinerário pode imaginar que ali terá lugar uma tradição de mais de 200 anos, com imagens e música originais do século XVIII. Não há mais ambiente para o sagrado na sociedade ituana deste terceiro milênio. O trânsito é fechado a prestações, quadra por quadra, como se ali se realizasse uma operação de tápa-buraco. E a procissão passa, ouvindo as marchas de sua banda misturadas com os sertanejos e pagodes dos botequins da vida.
Quanto tempo ainda sobreviverão nossas tradições?