CF 2024: “Fraternidade e amizade social” para curar uma sociedade adoecida (03)
Na CF 2024, partimos de um princípio muito basilar e seguro, expresso em seu lema: somos todos irmãos e irmãs, possuímos a mesma dignidade, que nos dá uma igualdade fundamental, uma vez que, “dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos temos a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos temos a mesma vocação e destino” (GS 29).
No entanto, move-nos a consciência de que estamos socialmente enfermos e é nossa missão ver, compadecer e cuidar (CF-2020). Por isso, a CF-2024 quer acompanhar nossa sociedade ao médico para que, com base nos sintomas que apresentamos, seja diagnosticada e medicada nossa doença mediante um processo de verdadeira conversão pessoal, comunitária e social.
O jornal “A Federação” encerra nesta edição a publicação do artigo do padre Jean Poul Hansen, secretário executivo de Campanhas na CNBB. O texto, publicado em três edições do jornal, pretende ser um guia para compreender os principais aspectos presentes no Texto-base da CF-2024.
4. A consulta à literatura referencial
Todo médico, ao ouvir os sintomas do paciente, consulta mentalmente todo o arcabouço teórico construído ao longo da sua formação. Assim também nós, neste diagnóstico da sociedade atual, recorremos à vasta literatura bíblica, capaz de iluminar a realidade, para chegarmos a nossas conclusões.
Partimos do fratricídio original, na narrativa de Caim e Abel (Gn 4,1-9), passamos pela história de José do Egito e seus irmãos (Gn 37-50), de Rute e sua sogra, Noemi (Rt), de Paulo, Filêmon e Onésimo (Fm), para chegar aos dois filhos do pai misericordioso (Lc 15,11-32) e às marcantes expressões de Jesus: “já não vos chamo servos, mas amigos” (Jo 15,15) e “vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23,8).
Também o testemunho dos santos nos ajudou. Quantos santos fizeram da amizade o caminho para a santidade! Gregório Nazianzeno e Basílio de Cesareia, São João Crisóstomo e a diaconisa Olímpia, São Bento e Santa Escolástica, São Francisco e sua gama de irmãos e amigos: Clara, Leão, Ângelo, Rufino, Masseo e Jacoba.
Os papas atuais também nos ajudam no diagnóstico: São João Paulo II, ao nos convidar, no início do terceiro milênio (NMI 43), a uma espiritualidade de comunhão e descrevê-la em detalhes; Bento XVI, na sua mensagem para o 43º Dia Mundial das Comunicações Sociais (24/5/2009), esclarecendo o conceito de amizade e promovendo-a, especialmente entre os jovens; e Francisco, ao nos mostrar como a fraternidade está no coração do Evangelho (EG 177-179).
5. Enfim, a receita e o remédio a ser administrado
O que todos esperamos, ao fim de uma consulta, é o prognóstico. Apresentamos os sintomas. O médico ajudou-nos, com base em suas fontes, a fazer um diagnóstico preciso. Agora, queremos saber como será o tratamento, qual será o remédio a ser administrado e como fazê-lo.
O remédio para nossa alterofobia, causada pelo hiperindividualismo, é a amizade social. Mas o que é amizade social? Do que se trata?
Deixemos que o próprio papa Francisco nos responda: amizade social é “amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço” (FT 1); “uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas, independentemente da sua proximidade física” (FT 1); “um amor desejoso de abraçar a todos” (FT 3); “comunicar com a vida o amor de Deus, recusando impor doutrinas por meio de uma guerra dialética” (FT 4); “é viver livre do desejo de domínio sobre os outros” (FT 4); “o amor que se estende para além das fronteiras” (FT 99), “a todo ser vivo” (FT 59); “o amor que rompe as cadeias que nos isolam e separam, lançando pontes; o amor que nos permite construir uma grande família na qual todos nós podemos nos sentir em casa; amor que sabe de compaixão e dignidade” (FT 62); nossa “vocação para formar uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros” (FT 96); “a capacidade diária de alargar meu círculo, chegar àqueles que espontaneamente não sinto como parte do meu mundo de interesses, embora se encontrem perto de mim” (FT 97); “amor que implica algo mais do que uma série de ações benéficas. As ações derivam de uma união que propende cada vez mais para o outro, considerando-o precioso, digno, aprazível e bom, independentemente das aparências físicas ou morais. Amor ao outro por ser quem é impele-nos a procurar o melhor para sua vida. Só cultivando essa forma de nos relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui ninguém e a fraternidade aberta a todos” (FT 94).
Agora, pois, é preciso aplicar esse remédio diariamente em nossa vida pessoal e em nossa convivência comunitária e social, com atitudes concretas, iniciativas reais e empenho comprometido com o fim da indiferença, do ódio, das divisões e guerras, superando resolutamente esse sistema que incha o indivíduo e anula as grandes causas sociais e comunitárias.
Que tal começar indo visitar um vizinho ainda desconhecido? Que tal tomar a iniciativa da reconciliação com um familiar de quem nos afastamos? Que tal celebrar e viver a reconciliação em nossas comunidades? Que tal vencer a omissão e denunciar toda forma de racismo e tantos outros males presentes na nossa sociedade? Que tal conscientizar sobre a coleta nacional da solidariedade, que se realizará no próximo domingo de Ramos, e promovê-la, já que ela socorre centenas de projetos sociais por todo o Brasil?
(artigo publicado na revista Vida Pastoral, jan-fev/2024)