A melancia  de Finados
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Desde muito cedo vou ao cemitério. Quando nasci havia poucos anos que minha avó materna tinha morrido e minha mãe visitava com frequência a sepultura dela. Era muito comum irmos ao campo santo aos sábados, com balde e vassoura nas mãos.
Mais tarde passei a frequentá-lo nos dias de Finados em companhia de meus avós paternos, além de acompanhar um ou outro enterro acontecido no decorrer do ano. Antes mesmo que o sol nascesse meu avô passava e apanhava-me com seu Opala 74 cor-de-vinho e logo às 6 horas da manhã estávamos lá, sob o testemunho dos infalíveis vicentinos, nos portões de entrada, a angariar donativos para seus assistidos.
Por mais estranho que a muitos possa parecer, sempre gostei de ir ao cemitério, de visitá-lo fora dessas datas tradicionais ou de obrigações de enterros, quando tudo está quieto e tranquilo. Além de nos fazer refletir sobre nossa condição humana, sobre o efêmero da vida, nos faz lembrar de pessoas, seja pelo nome nas lápides, seja pelas fotos que sobre elas alguns túmulos ostentam, que ora nos trazem saudade ao coração, ora nos fazem até rir pela lembrança de casos vividos com o sujeito cujos restos ali repousam à espera da ressurreição do último dia.
Meus avós tinham o costume de visitar quase todos os parentes e amigos ali sepultados. Começavam pela esquerda de quem entra e seguiam em sentido horário, percorrendo as várias quadras em busca de avós, tios, cunhados, sobrinhos…, com uma paradinha no velário dos fundos para queimar alguns maços de vela. Às 8 horas, quando os raios do sol começavam a tomar força que somente seria aplacada pela costumeira chuva do fim de tarde, já havíamos terminado a “ronda” e podíamos assistir à primeira missa do dia, a cargo do Pe. Miguel Coll, do São Judas.
E houve ainda uma época em que, não obstante a canseira da manhã, voltava à última morada também à tarde. Tempos de coroinha na Matriz da Candelária.
As missas nesse dia, de hora em hora, eram revezadas pelos vigários das então poucas paróquias da cidade e a das 3 da tarde era de Monsenhor Camilo, da Candelária, que queria que todos os seus coroinhas estivessem presentes. Porque terminada a celebração visitávamos alguns túmulos, entre eles os de Monsenhor Heládio e do jovem Ivo Domingues Barbieri, coroinha falecido precocemente e cujo pôster víamos na parede da antiga sala dos coroinhas da Matriz, espaço que, com as salas dos irmãos do Santíssimo e do sacristão, infelizmente cedeu lugar à cozinha industrial hoje anexa à igreja.
Mas para nós, coroinhas, o melhor ainda estava por vir. Cumpridos esses sufrágios, todos nos dirigíamos ao salão paroquial da Matriz, onde Monsenhor Camilo havia preparado uma geladeira cheia de saborosas melancias. Era um regalo só! Naquele dia em que o calor dava suas primeiras caras, enquanto não víamos a última fatia ninguém arredava o pé.
Era uma época em que a igreja tinha uns 100 coroinhas, de todos os tamanhos e idades, que formavam filas intermináveis nas procissões, avermelhavam as celebrações. Em tempos em que ministro da eucaristia era ministro da eucaristia e só entrava para ajudar o padre na hora da comunhão, e se necessário, eram os coroinhas quem ajudavam as missas, fosse o horário que fosse, sob rigorosa escala preparada por Da. Erminda. O volume exigia escala para quase tudo: para tocar os sinos da igreja, levar o turíbulo e a naveta, bater matraca na semana santa, sem falar em ajudar a missa no “lado direito”, quando se tinha algumas atribuições a mais. Quinta à noite havia missa semanal e reunião, dividida por idade, com lição e tudo. Tive aula com o Celso Tomba e com o hoje padre Jorge Demarchi.
Hoje são poucos os coroinhas nas igrejas. Já não se valoriza muito o ministério do altar, que prolongava a permanência das crianças e adolescentes na Igreja, instruía, formava cristãos e não raro suscitava vocações.
Como era doce aquela melancia!…