O desespero do não acreditar em Deus
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Um paralelo entre Kirilov (Os Demônios – Dostoievski) e “Tarde vos Amei”, de Santo Agostinho

A busca pelo significado e propósito da vida é uma questão central na experiência humana. Para muitos, a crença em Deus desempenha um papel fundamental na construção de um sentido de identidade e na busca de respostas para os dilemas existenciais. No entanto, existem aqueles que enfrentam o desespero resultante da falta de crença em Deus, exemplo disso é o personagem Kirilov, da obra de Fiodor Dostoiévski, “Os Demônios” (ou “Os Possuídos”).

Kirilov é um personagem complexo e atormentado que se debate com o desespero de não acreditar em Deus. Ele reconhece a ausência de um poder superior e a falta de um propósito transcendente na existência humana. Essa percepção o leva a um estado de desespero, pois ele se depara com a impossibilidade de encontrar um significado absoluto em sua vida.

A negação de Deus coloca Kirilov em uma encruzilhada existencial. Sem a crença em um ser divino que possa fornecer um propósito ou uma ordem moral universal, ele se sente livre para fazer o que quiser, inclusive tirar sua própria vida. Para ele, o suicídio se torna uma escolha lógica diante da falta de sentido da existência. Kirilov acredita que, ao se tornar o próprio autor de sua morte, ele se tornará o senhor absoluto de sua própria vida.

O desespero de Kirilov também pode ser interpretado como uma resposta à solidão e ao isolamento que resultam da falta de uma crença compartilhada em Deus. Ele se sente alienado da sociedade e incompreendido pelos outros personagens, que ainda possuem alguma forma de fé ou crença em um poder superior. Essa alienação aprofunda seu desespero e o leva a buscar respostas em ações extremas. Há um paralelo intrigante entre Kirilov e certos aspectos da libertinagem e do ateísmo contemporâneo.

Por outro lado, em “Tarde Vos Amei” (Confissões), Santo Agostinho descreve sua busca espiritual em direção a Deus. Agostinho relata como, ao longo de sua vida, ele buscou satisfazer suas necessidades através das criaturas e do mundo material, apenas para perceber que essas buscas eram vazias. Sua ideia central, “Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, eis que estavas dentro, e eu, fora – e fora Te buscava, e me lançava, disforme e nada belo, perante a beleza de tudo e de todos que criaste. Estavas comigo, e eu não estava Contigo… Seguravam-me longe de Ti as coisas que não existiriam senão em Ti”, reflete seu reconhecimento de que Deus sempre esteve presente em sua vida, mas ele só o percebeu tardiamente. Agostinho experimenta um despertar espiritual no qual encontra significado e plenitude em Deus, afastando-se do vazio da busca hedonista e materialista.

O santo menciona o impacto da verdade divina sobre a mente e o coração, onde a compreensão intelectual se mescla com uma profunda resposta existencial, trazendo uma verdadeira alegria em sua alma como um processo gradual de despertar para a realidade transcendental, preenchendo os vazios emocionais e espirituais que ele experimentou anteriormente com o temporal. A clareza obtida através dessa compreensão revela um aspecto central da liberdade do ser humano ensinado no Vaticano II, o qual resume o drama desses dois personagens (Kirilov-libertinagem; Agostinho-liberdade): “só na liberdade que o homem se pode converter ao bem. Os homens de hoje apreciam grandemente e procuram com ardor esta liberdade; e com toda a razão. Muitas vezes, porém, fomentam-na dum modo condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que agrade. A liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem” (Gaudium et Spes, n. 17).

Assim, tanto Kirilov quanto Agostinho enfrentaram uma crise existencial, mas suas respostas são notavelmente diferentes. Kirilov se lança no abismo do niilismo, vendo a liberdade como um fardo insuportável. Agostinho, por outro lado, encontra consolo e significado em sua descoberta da divindade presente em sua existência. Enquanto Kirilov busca se tornar um “deus” pela morte, Agostinho busca a Deus para encontrar a vida.