Um santo triste é um triste santo
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Era muito comum, em seus sermões dominicais, Pe. Amirat invocar o provérbio “Um santo triste é um triste santo” quando se referia não somente a exemplos de santos canonizados, mas à vida cristã mesma. Dizia que a santidade não significa andar cabisbaixo, triste, demonstrando melancolia ou desânimo, mas viver um relacionamento com Deus que envolve a alegria e o humor. O santo tem a arte de não se levar demasiado a sério, porque ele se desamarra de si mesmo. Citava a alegria de um São Franciso de Assis, de uma Santa Bernardete Soubirous, de um São João Bosco, e até tiradas extremamente bem-humoradas na oração desses grandes amigos de Deus, como a de Santa Tereza d’Ávila que um dia, enfrentando a sensação de que Deus lhe estava distante e indiferente, declarou a Nosso Senhor: “Do jeito que tratas os teus amigos, Senhor, eu bem entendo que não tenhas muitos”.

Já nos nossos dias, são conhecidas as tiradas espirituosas do Papa São João XXIII. Conta-se que certa vez saiu do Vaticano sozinho e foi ao Hospital Espírito Santo para visitar discretamente um amigo padre que estava internado. Ao bater à porta, surgiu a madre superiora, que, emocionadíssima, disse: “Santo Padre! Eu sou a superiora do Espírito Santo”, ao que ele lhe respondeu: “Mas que grande carreira a senhora fez, madre! Eu só consegui chegar a ser Vigário de Cristo”. Em outra ocasião, um grupo de freiras se apresentou a ele informando que eram as irmãs de São José. Ele logo disparou: “Ora, mas que bem conservadas!”. Os exemplos multiplicam-se, não só do chamado Papa Bom, mas de tantos outros santos e santas que viveram com alegria e bom humor, irradiando a presença de Cristo em suas vidas.

Em maio deste ano celebramos o centenário do nosso saudoso amigo Pe. Ranulpho Morais Amirat, um dos últimos sacerdotes que residiram na igreja do Bom Jesus, em Itu. Para festejar a data, o Museu da Música Itu promoveu uma série de atividades para homenagear a memória do jesuíta ituano, falecido em Belo Horizonte em 2010. Entre elas, uma exposição de objetos e, sobretudo, de fotografias que foram cedidas por familiares e amigos e que até então me eram desconhecidas.

O que mais me chamou atenção é que essas fotos, de diferentes épocas e circunstâncias, desde a infância até a idade avançada, pouco antes de sua morte, passando pelo período em que estudou e morou nos Estados Unidos e pelas mais de duas décadas no Bom Jesus, revelaram-me um Pe. Amirat sempre sorridente. Em praticamente todas as fotos lá estava ele rindo, às vezes em meio a familiares sérios ou padres sisudos. A observação disso até me divertiu, enchendo-me ainda mais de saudade de seu bom humor e das sonoras gargalhadas que o projetavam para trás, do seu olhar atencioso e expressivo apesar das pálpebras meio caídas que lhe eram características.

Pe. Amirat era um homem de Deus! Um sacerdote que sabia muito bem mesclar a gravidade de seu ministério com o bom humor no dia-a-dia. Tal como traduziam aquelas fotos. É claro que diante de algo errado ou de uma situação que o incomodava, ficava muito bravo e não tinha conversa: o que é certo é certo; o que é errado é errado! Mas a forma – metódica, sim – mas tão bem-humorada como vivia me faziam admirar ainda mais a seriedade com que exercia o sacerdócio.

Lembro-me da religiosidade – aqui no sentido de constância – com que atendia diariamente confissões. Naquele mesmo horário, de manhã e de tarde, de segunda a segunda, percorria de ponta a ponta o corredor que ligava a igreja à sacristia, com sua infalível batina, ora rezando o terço, ora o breviário, interrompendo a oração quando chegava um penitente ou qualquer pessoa que quisesse um conselho, uma bênção, marcar uma missa ou mesmo um dedo de prosa, sempre recheada de algum comentário divertido e até de uma boa piada. E a santa missa, então! Quando estava sozinho na casa, chegava a celebrar três ou quatro no dia, em tempos em que inclusive se aceitava missa de corpo presente. A propósito das inúmeras atividades que tinha de administração e conservação da residência jesuíta, dizia que “se a vida fosse só celebrar missa e atender confissões, seria um mar de rosas”.

Para a missa, preparava ele mesmo o altar, acendia as luzes e paramentava-se em silêncio, na sacristia, rezando a oração própria de cada veste. Não abria mão da indumentária completa em todas as celebrações: dizia que a túnica e o estolão, já tão usuais, “eram estúpidas imitações dos protestantes”.

Celebrava sempre do mesmo modo: em 30 a 35 minutos durante a semana, como havia aprendido no seminário, de olhos baixos como mandava a liturgia, com a mesma entonação de voz que alterava somente ao pronunciar as fórmulas da consagração para imprimir nelas o caráter pessoal. Graças a ele, até hoje inevitavelmente meço a seriedade de um padre pela forma como consagra, pela entonação da voz e pelo modo com que adora as Sagradas Espécies. Pe. Amirat parecia viver cada missa como se fosse a última, o momento máximo da alegria que cultivou durante toda a sua vida e que fez dele um feliz e bem-humorado santo do Senhor.