Padre Ranulpho Moraes Amirat SJ – Comemoração do Centenário
Evandro Antonio Correia
Quem, hoje, vos escreve não é mais aquele menino que entrou por aquelas mesmas portas do Bom Jesus há muitos anos! Mas, uma pessoa que aprendeu a enamorar-se da beleza de Deus e de sua criação pelo exemplo que recebeu, desde a meninice, daquele padre que ensinou a crer no Bom Jesus martirizado que nos deu Vida Nova pelo seu Coração abrasado de Amor.
O primeiro contato com pe. Amirat foi por volta de março de 1977, quando entrei como coroinha. A partir daí quase todos os dias frequentei o Bom Jesus, até minha ida para o Mosteiro. O impacto de vê-lo sempre com hábito e pelo fato de usar os paramentos corretamente, para a celebração dos Sacramentos, chamaram-me a atenção.
Indo além do prazer pela amizade instaurada com pe. Amirat, ele possuía a capacidade e gosto por explicar qualquer coisa e não se incomodar em responder àquela criançada. Uma escola antecipada que, em certos momentos, se tornara difícil. Tantas vezes, não entendia! Mas, a curiosidade infantil serviu para guardar na memória todo esse engrandecimento e enriquecimento interior. E me serviu naqueles dias de estudante e de monge. Abriu-se, com essa amizade, um novo horizonte, novas coisas e perspectivas, pois, acreditei que era Deus quem me oferecia!
Eu o admirava pela gravidade, pela sua acuidade ao celebrar a Eucaristia, que foi a primeira impressão! Do mesmo modo, admirava-o ao administrar o sacramento da Penitência, no atendimento diário no Bom Jesus. O seu respeito à Liturgia era, sim, percebido pela observância das orientações da Igreja.
Posso dizer que aprendi com ele essa leitura da profissão de nossa fé cristã através da Liturgia: a Oração oficial da Igreja Católica. E hoje faço a releitura desse gesto amoroso de contato com Deus que se expressa através daquilo que se reza, para testemunhar aquilo em que se acredita. Contudo, a pergunta que me fiz anos depois foi como um jesuíta se esmerava tanto na Liturgia? O estilo de Vida Consagrada proposta pela Companhia de Jesus é outro! Talvez, a resposta adequada seja que o seu papel de sacerdote era nos ensinar e mostrar o caminho da fé e ajudar a traça-lo até o Deus Trino e Uno.
Foi pe. Amirat quem me ensinou todo o novo Ciclo do Ano Litúrgico do Vaticano II. As duas séries de Leituras da Missa: a do Domingo (ciclo A, B, C) e o da semana (ano par ou ímpar). E que todas as celebrações dos sete Sacramentos seguem o mesmo Ciclo; as quatro cores usadas pela Liturgia conforme a efeméride comemorada; o Oficio Divino dos padres e religiosos, também, obedece a esse Ciclo. Tudo isso, denota a riqueza da nossa Religião, dos textos bíblicos, dos ritos, do quotidiano de nossa vida humana resumida na sequência dos sete Sacramentos.
Porém, não era muito favorável aos excessos litúrgicos (de ambos os lados, fique bem claro); esmero é diferente de rebuscamento. Porém, rebuscada era sua homilia, eram suas explicações. Outras tantas, objetivas e contundentes como a homilia sobre a fofoca e o falatório na igreja! Porém, outra pergunta se faz: como um físico, o qual poderia justificar tudo pela matéria, pelo raciocínio, condividia sua vida com a realidade metafísica (transcendente) que a Religião apresenta? Ela atenua e religa aquilo que a mente humana se limita? Supre aquilo que a mente humana não conseguiu explicar de maneira absolutamente física?
Outro pormenor que testemunhei, foi seu carinho e cuidado para com os padres mais velhos da casa, pe. Guilherme e pe. Luiz. Ajustava as modernidades à velhice. Pelo seu talento de cientista, trazia à mão as comodidades do rádio e da televisão que, naquele tempo, de um Brasil sacrificado pelo regime militar, eram limitadas e difíceis. Inclusive, testemunhei os dias que precederam o falecimento de pe. Guilherme; foi ele quem o acudiu nos últimos momentos, buscando o necessário!
E todo esse talento tecnológico transportou-o para os ajustes de sonorização e iluminação do Bom Jesus. Pe. Amirat fazia, quase tudo, sozinho! Claro, ele tinha alguns colaboradores, principalmente, na construção do presépio mecânico, reparos gerais na residência e na manutenção da igreja.
Pe. Amirat era um relógio! Metódico, nem mais nem menos! Trazia mais paciência com os coroinhas que os outros padres. Fazia de conta que não via e nem ouvia as estripulias, as algazarras, os assaltos ao refeitório. Contudo, as telhas quebradas, no telhado, foram o motivo de um belo sermão da “única palavra”: não subam mais! O coração quase saiu pela boca! Pudera, as goteiras, na igreja se multiplicaram!
Essas breves memórias, provavelmente, completam todos os demais eventos comemorativos de seu centenário. Pe. Amirat marcou, por muitos anos Itu, através do presépio mecânico. E, testemunhei, de seus lábios, que o presépio era para os pobres. Uma obra de entretenimento catequético e inteligência vertida como amor ao próximo. A única coisa que se pagava eram as fichas. Mesmo na dificuldade, era só esperar, as pessoas colhiam a oportunidade de assistir as mais variadas cenas em movimento, através da boa ação de outras!
Trago em meu coração um agradecimento pela vida transcorrida aqui quando menino. Tentei trazer para minha realidade muitos comportamentos que julguei melhores e coerentes. Pe. Amirat foi um desses modelos de equilíbrio da Vida Consagrada.
Para concluir, quero contar uma anedota de coroinha. Certa ocasião, na festa do Coração de Jesus, enquanto os sinos tocavam durante o tríduo, íamos escutá-los no jardim da parreira, pois, ainda não podíamos subir na torre do sino! Ao final de um desses repiques, eu gritei: “dim…dom…”. No jardim, quem ia escutar!? Entretanto, quatro quartos dos padres têm janelas que se debruçam para esse jardim. Eis que, de repente, ouve-se da janela do quarto de Pe. Amirat, sinos tocando (naquele dia havia gravado nova edição para colocar no presépio), ao final, registrado estava o “dim…dom…”. Ele olhou pela janela e deu aquela gargalhada!
(Foto em destaque: Padre Amirat celebrando missa no Bom Jesus com o coroinha Evandro Correia, ano de 1980 / Coleção Maria Claudete Camargo)