O centenário de Padre Amirat
Toda vez que faço aniversário, entre outras tantas lembranças que a data inevitavelmente nos traz à mente, vem a do abraço apertado que recebia todos os anos de Pe. Amirat. Que gentileza, que carinho para conosco que o ajudávamos ali naquele velho Bom Jesus de outrora ainda dirigido pelos padres jesuítas. E não era só o abraço! Como esquecer do presente que sempre nos dava! Uma garrafa de vinho “canônico”, do que os padres usavam na missa (tenho uma guardada ainda, de lembrança!), e uma caixa de bombons, tudo embrulhado em papel de presente e acondicionado num saquinho… e sem faltar o cartão com uma carinhosa mensagem escrita naquela letra tão bonita da qual – confesso – roubei alguns rebusques para a minha. Durante muitos anos depois de sua partida de Itu ainda me ligava para me cumprimentar, com sua voz entusiasmada e seus célebres chavões: para ele – dizia –, enquanto ficava “mais velho e caduco”, todos ficavam “mais jovens e bonitos”… Que saudade!
Neste mês de maio, se vivo fosse, Pe. Amirat faria 100 anos, razão do singelo encômio a esse sacerdote que tanto representou em minha infância e juventude.
Filho de Pedro Amirat e Priscila Morais Navarro, Ranulpho Morais Amirat nasceu em Itu, aos 27 de maio de 1923. Seu avô paterno, o arquiteto Louis Amirat, entre outras obras, foi quem projetou o Santuário Nacional do Coração de Jesus, anexo à Igreja do Bom Jesus. A convite do Pe. Luís Yabar, de quem era coroinha no Bom Jesus, ingressou na Escola Apostólica da Companhia de Jesus, em Nova Friburgo, em 1936, professando na Ordem em 1940. Ordenou-se sacerdote em 18 de junho de 1952 na cidade de West Baden, Estado de Indiana, nos Estados Unidos, onde concluiu seus estudos de Teologia. Ainda nos Estados Unidos, fez o doutorado em física nuclear, na Stanford University, na Califórnia.
Retornou ao Brasil seis anos após ordenado. Só então pôde cantar sua Primeira Missa na terra natal. Achava curioso que tivesse sido já com seis anos de padre. Contava que quem o assistira no altar foi o conterrâneo, Pe. Arthur Sampaio. Foi então reitor do Colégio Anchieta e diretor da Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Medianeira, em Nova Friburgo. Depois, vice-reitor do Instituto de Física da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
No início de 1968 veio a Itu para passar umas férias que acabaram durando 24 anos, até o dia 3 de agosto de 1992, quando transferido para Itaici, residência dos jesuítas em Indaiatuba, após a Companhia ter decidido encerrar suas atividades em Itu e entregar a igreja do Bom Jesus à Diocese.
Pe. Amirat era um sacerdote exemplar. Nos quase 25 anos em Itu, lembro-me de ter tirado cinco dias de “férias”, para uns exames, em Itaici. Cumpria com precisão seus compromissos sacerdotais. Vivia para isso, nada mais. Não havia dia em que não abrisse ele mesmo a igreja, acendesse as luzes, preparasse para a missa, celebrasse. Com a piedade e zelo de sempre… e os olhos baixos, como mandava a Liturgia. Não havia dia em que não fosse visto rezando o breviário e o terço no corredor da sacristia, no mesmo horário, à espera dos penitentes para a confissão.
Homem notável, de um conhecimento prático invejável. Quanta coisa aprendi com ele, ora na carpintaria da casa, ora nos arrastando entre as toras do forro da igreja para consertar uma ligação danificada. Que diversão – e temeridade – quando resolvemos fazer juntos a manutenção na cruz da igreja, à época cravejada de lâmpadas vermelhas: escadas, cordas, alicates, arames… e uma perna tremendo como vara verde de medo da altura.
Em sua longa permanência em Itu, arquitetou uma verdadeira engenhosidade: o “Presépio Mecânico do Bom Jesus”. Com a ajuda de habilidosos marceneiros e artistas, montou uma verdadeira cidadezinha no então desativado Teatro São Domingos, nos fundos da residência jesuíta, com uma mini-fazenda, circo, baile, parque de diversões, orquestra, toureada, trenzinhos, procissão e tudo que se possa imaginar, além, é claro, do presépio propriamente dito, com vaquinha e boizinho a balançarem a cabeça diante do Menino Jesus. Durante mais de uma década o presépio funcionou no tempo do Natal, trazendo alegria e diversão às crianças e – por que não dizer – aos adultos que se embeveciam pela criatividade dos conjuntos que se movimentavam.
Lembro-me com saudade das longas prosas na sacristia, enquanto limpávamos as velinhas. Conversas sempre recheadas de apurado conhecimento religioso e científico. Tinha sempre a explicação que buscávamos, com didática de verdadeiro professor. E a festa que fazia quando chegávamos, então! Mesmo que ali estivéssemos todos os dias. Sempre com uma brincadeira, uma conversa bem-humorada, e a famosa e sonora gargalhada que o projetava para trás.
Seus últimos anos em Itu foram um tanto tumultuados. Estava assoberbado pelas tarefas da residência, cansado. O zelo por aquele enorme e antigo prédio, com todas as suas dependências, e o grande movimento religioso que o Bom Jesus tinha, pouco a pouco o fizeram deixar os compromissos externos, como as missas na Matriz, a capelania do Patrocínio e as aulas na Faculdade de Filosofia.
Quase no fim da vida, já em Itaici, conseguiram arrancar-lhe a batina negra da qual tanto se orgulhava. No final de 2008 – houve em Itaici quem contasse – entrou num carro ciente de que se dirigia ao médico para uns exames. Mas, no meio do caminho, como o médico demorasse a chegar, soube que era conduzido à casa de saúde dos jesuítas em Belo Horizonte…
Na sua derradeira casa, desacostumado ao novo ambiente, um tombo abriu-lhe a cabeça, abalando bastante a sua saúde. Após breve internação retornou para casa, mas não resistiu. Morreu aos 87 anos no dia 12 de junho, uma sexta-feira do mês do Coração de Jesus, dia em que terminaria, outrora, a trezena de Santo Antonio, para ser sepultado no dia do santo a quem tinha tanta devoção. Um sábado, também dedicado a Nossa Senhora, 13 de junho de 2010.
Tentei falar com Pe. Amirat em seu último aniversário. Não transferiram a ligação. Disseram-me que estava impossibilitado de atender ao telefone e lhe transmitiriam os meus cumprimentos. Foi uma pena. Queria ouvir, mesmo que não se lembrasse mais de mim, aquele “Deus lhe abençoe e recompense um milhão por cento”.
Encontrei-me com o mestre e amigo pela última vez em dezembro de 2007, quando então tive a graça de vê-lo abençoar a meu filho, ainda no ventre materno, e de sentir aquele costumeiro abraço, apertado…