“Senhor, eu te amo!”
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Pe. Paulo Eduardo F. de Souza
Reitor dos Núcleos Teológico e Filosófico do
Seminário Diocesano “Nossa Senhora do Desterro”

Bento XVI concluiu sua peregrinação terrestre no último dia do ano passado. Diz-se que, de madrugada, por volta das 3h, o enfermeiro de turno teria escutado suas últimas palavras: “Senhor, eu te amo!”. É comovente que um Sucessor de Pedro termine seus dias com as palavras do Pescador da Galileia nos lábios: “Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te amo!” (Jo 21, 17). Não é nossa intenção resumir a vida e a obra de Joseph Ratzinger nessas poucas linhas. Seria impossível! Queremos apenas salientar como o seu amor por Jesus, o Senhor, merece ser levado a sério em qualquer tentativa de avaliar seu legado pastoral e teológico.

A centralidade de Jesus Cristo no árduo trabalho de Ratzinger mereceu um profético elogio da parte do Cardeal Giacomo Biffi nas reuniões que imediatamente precederam o Conclave de 2005. Falando da polêmica Declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé, dicastério então comandado pelo purpurado alemão, Biffi exclamou: “Expresso minha gratidão ao Cardeal Ratzinger! Que Jesus seja o Salvador de todos é uma verdade que, em vinte séculos – a partir do discurso de Pedro depois de Pentecostes –, não tinha sido necessário recordar (…). O fato de que hoje seja necessário repropor tal ensinamento e de que, mesmo dentro da Igreja, seja ele tão contestado nos dá a medida da gravidade da situação hodierna”. Com efeito, o referido documento, promulgado no Grande Jubileu do Ano 2000, versava sobre a unidade e a universalidade salvífica de Jesus Cristo e, consequentemente, da Igreja. Alguns quiseram interpretá-lo como um balde de água fria no diálogo interreligioso e no ecumenismo. Na realidade, não era preciso remontar à pregação apostólica: a Declaração não era senão o ensinamento do Concílio Vaticano II apresentado com toda a sua força e limpidez. O futuro Bento XVI, a despeito de quaisquer críticas, não hesitou em reafirmar, na consideração do projeto divino de salvação, a centralidade do mistério da encarnação, morte e ressurreição do Filho de Deus. Era um convite para que todos os filhos e filhas da Igreja não se distraíssem com o periférico; era um aceno para o essencial: o Senhor Jesus.

Toda a obra teológica e todo o ensinamento pontifício do Papa Ratzinger foram conduzidos pela centralidade da Pessoa de Jesus. Isso é fundamental para não permitirmos que o enquadrem no estereótipo de rígido transmissor e defensor de doutrinas. Nesse sentido, é eloquente uma particular afirmação do Papa bávaro. Numa Lectio Divina com os Párocos de Roma, no ano de 2011, Bento XVI, discorrendo sobre a necessidade de anunciar a vontade divina, esclareceu: “(…) é importante também não nos perdermos nos pormenores, não criar a ideia de que o Cristianismo é um conjunto imenso de coisas para aprender. Ainda hoje é simples: Deus mostrou-se em Cristo. Mas entrar nesta simplicidade — eu creio em Deus que se mostra em Cristo e desejo ver e realizar a sua vontade — tem conteúdos e, de acordo com as situações, entramos depois nos pormenores ou não; mas, por um lado, é essencial fazer compreender a simplicidade última da fé”. Grande catequista, o Papa Bento estava repropondo o kérygma, o anúncio primeiro da fé. Na realidade, trata-se sempre da luminosa afirmação de sua fenomenal encíclica Deus caritas est: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, Jesus Cristo, que dá um novo horizonte à vida e, desta forma, o rumo decisivo”.

Amar o Senhor nunca foi, para Bento, uma questão meramente sentimental. Amar, como ele tantas vezes ensinou, é a consolidação de uma comunhão de vontades: eu amo a Deus se quero o que Ele quer! Eis a razão sobrenatural de todo o seu ensinamento social. Amar o próximo, sobretudo o mais indefeso, o mais necessitado de ajuda, é comunhão com a vontade divina, que não despreza os pequeninos. O Papa alemão, num mundo tão iludido por falsas promessas de amor, tão inebriado por propostas sentimentalóides, repropôs com vigor o ensinamento da Igreja nascente: “Se alguém disser: ‘Amo a Deus’, mas odeia o seu irmão, é mentiroso” (1Jo 4, 20a).

A coragem que caracterizou Ratzinger na defesa dos pequeninos – e, de maneira especial, na defesa da fé dos simples e na defesa heroica daqueles que foram vítimas de abuso sexual por parte de membros do clero – sinaliza que o derradeiro “eu te amo” de Bento XVI não foi uma simples manifestação de afeto religioso. Não! Foi o resumo de uma vida que deu ao Senhor Jesus e à sua santíssima vontade a centralidade que faz o coração do homem verdadeiramente feliz. Que agora o Papa emérito ouça do seu Amado: “Entra na alegria do teu Senhor!” (Mt 25, 23).

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