As frágeis asas da ambição e o voo espiritual
por Olga Sodré
O mito de Ícaro e a distorção do desejo de se elevar
Muitas pessoas já experimentaram o desejo de expandir seus horizontes, de liberar suas vidas dos liames das necessidades imediatas, de elevar seu espírito e voar mais alto. Talvez alguns tenham percebido o momento em que esse movimento deixou de ser livre e passou a ser arrastado pela sombra da ambição, do desejo de domínio ou da constante busca de ganhos e aplausos. Poucos conseguem escapar desse aprisionamento e manter livre a chama da criatividade e do movimento de ascensão.
A evolução espiritual toma impulso na aspiração por transcendência, mas requer o conhecimento do caminho para sua realização. O mito grego de Ícaro evoca as distorções do desejo humano de poder alçar voo e se elevar mais alto por suas próprias forças. Ícaro é o símbolo da exaltação do eu conduzido pela ambição humana. A narração começa com o aprisionamento de Ícaro e seu pai, no Labirinto de Creta, de onde escapam com asas feitas de penas e cera.
Cedendo ao desejo de ultrapassar os limites das frágeis asas construídas para escapar do labirinto, Ícaro procura se elevar aos céus, mas elas são derretidas quando ele se aproxima do calor do sol. Esse mito põe em evidência os riscos de basear-se no esforço pessoal para aproximar-se do sol (símbolo do divino) com asas humanas. Não suportando o calor solar, elas se derretem e levam ao naufrágio de Ícaro em alto mar.
Algumas narrações históricas vão além dessa narração mitológica e relatam como ocorreram experiências bem sucedidas no voo espiritual. Testemunhos de santos católicos põem em evidência que a elevação espiritual por eles atingida ocorreu pelo voo mais alto até as regiões ardentes do sol divino nas asas do Espírito Santo. Daí a importância de aprender a escutar o desejo de Deus e procurar ouvir a sua voz no fundo do coração.
É preciso estar muito atento para perceber o seu chamado e o diferenciar dos demais impulsos. Por meio desse desejo, Deus cria um movimento novo diverso do impulso pessoal. Consegui identificar seu chamado pelo fato de o coração não se inflamar nos outros desejos como quando é por ele movido. Observei essa diferença nos momentos em que meu impulso pessoal devia decidir a respeito de alguma situação aparentemente favorável, mas na qual o coração não ardia como no desejo de Deus.
Ao longo do meu processo espiritual tem sido fundamental a chama do desejo de Deus me guiando no mundo das sombras. Algumas pesquisas sobre espiritualidade assinalam a universalidade do desejo de Deus inscrito no coração humano. Ele corresponde a uma capacidade natural de orientação do nosso espírito na direção do divino, fazendo parte do dom de ser e da própria estrutura da natureza humana que só é parcialmente realizada no âmbito do mundo. Cristo é um caminho seguro de elevação, pois nele podemos conhecer tanto a face de Deus como a face reconstituída da criatura. Ele nos revela simultaneamente a Divindade e a perfeição humana. Contemplar a Cristo é conhecer Deus e o protótipo humano completamente renovado e arrebatador.