Os Passos de Jesus pelas ruas de Itu
por Altair Estrada Júnior
Em razão da epidemia do coronavírus, como medida de prevenção do contágio e solícito às autoridades sanitárias, um decreto diocesano suspendeu neste ano de 2020 as celebrações da Semana Santa com povo. Essa decisão alcança tanto as celebrações litúrgicas quanto as chamadas paralitúrgicas, entre estas a tradicional Procissão de Passos, que aconteceria em Itu na noite do Domingo de Ramos, em 5 de abril, na igreja de Nossa Senhora do Carmo.
“Tradição ibérica, a Procissão de Passos é uma contemplação dos Passos de Jesus, ou seja, dos momentos mais marcantes desde que foi preso, no Getsemani até o Calvário” . Trazida pelos portugueses ao Brasil, a Procissão de Passos é realizada em Itu “desde, pelo menos, a primeira década do século XIX” , quando iniciada pela Venerável Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo. “Os Terceiros ituanos encomendaram a Pedro da Cunha, as imagens para a Procissão do Triunfo” . Essas imagens, de rara beleza e expressão, são veneradas até hoje nos altares laterais da igreja do Carmo e incluem o grande crucificado, afixado na entrada da igreja. Todas elas saíam às ruas antigamente na tarde do Domingo de Ramos para a Procissão do Triunfo e uma delas, a do Senhor dos Passos, era utilizada para a procissão do mesmo nome e que era realizada no domingo anterior – o Domingo da Paixão. Quando a Procissão do Triunfo deixou de ser realizada, a de Passos foi transferida para o Domingo de Ramos, onde permanece até hoje.
Seguindo uma tradição bicentenária, a Procissão de Passos é ainda hoje uma das principais celebrações da Semana Santa ituana e uma das melhores formas de iniciá-la, sendo de muita utilidade conhecer as particularidades e o sentido dessa celebração para um maior proveito espiritual na caminhada para a Páscoa da Ressurreição. Privilégio muito antigo da Ordem do Carmo, na verdade, trata-se da versão carmelita da via-sacra. Isso mesmo: ao invés das 14 estações da via-sacra habitual, modelada por São Francisco de Assis, a via-sacra carmelita tem apenas sete estações – os “passos” – diferindo também um pouco nas passagens que se medita.
A procissão simboliza o caminho doloroso percorrido por Cristo até o Calvário, para a crucifixão. Por isso é uma cerimônia muito tocante, que se reveste de um caráter triste. Não se tocam sinos e mesmo a banda de música acompanha o cortejo com melodias mais austeras, as “Marchas do Senhor dos Passos”, conjunto de quatro marchas religiosas compostas em tonalidade menor pelo Maestro João Narciso do Amaral.
Na realidade, são duas as procissões que saem da igreja do Carmo e seguem por caminhos diferentes. A primeira, conduzindo a imagem do Senhor dos Passos – Jesus com a cruz nas costas, desce pelas ruas centrais da cidade, e a segunda, conduzindo a imagem de Nossa Senhora das Dores, desce por uma rua lateral. O povo carrega aqueles pesados andores nos ombros como que amenizando um pouco os sofrimentos que as duas imagens inspiram. No itinerário há sete paradas da procissão – os “passos”, armados esmeradamente por famílias e igrejas.
Quem oficia a procissão geralmente é um frade carmelita, que carrega a relíquia do “Santo Lenho”, um fragmento bem pequeno da Cruz em que Cristo derramou o Seu Sangue. Ele acompanha a procissão debaixo do “pálio”, que é uma cobertura de pano sustentada por seis varas, com a finalidade de proteger e inspirar respeito pelo que está sob ele. A capa usada pelo oficiante chama-se “pluvial” ou “capa de asperges” e serve para destacar a dignidade do sacerdote ao levar a relíquia da Santa Cruz pelas ruas da cidade.
Os Passos de Nosso Senhor em Itu
Chegando a cada passo, o padre entra, deposita a relíquia sobre o altar especialmente preparado e a incensa. O incenso tem a finalidade de purificação e de levar nossas orações ao céu, pela fumaça perfumada. Enquanto é incensada a relíquia, coro e orquestra executam os ”motetes”, que são alusões àquilo que representa cada passo. Os cânticos atualmente executados são em latim, compostos no século XIX pelo maestro ituano José Mariano da Costa Lobo (há também uma versão de Elias Lobo, de 1869 ). Cada parada simboliza uma passagem: 1.º passo – “Jesus no Horto”; 2.º passo – “Jesus é preso”; 3.º passo – “Jesus é flagelado”; 4.º passo – “Jesus é coroado de espinhos”; 5.º passo – “Jesus é apresentado ao povo – Ecce Homo”; 6.º passo – “Jesus com a cruz nas costas”; 7.º passo – “Jesus é crucificado”. Depois há o comovente canto da Verônica, também em latim e de autoria do Pe. Jesuíno do Monte Carmelo, que o compôs por volta de 1804 . Embora seja cantado pela Verônica, figura coberta de preto a quem a Tradição atribui ter enxugado o rosto de Jesus na via-crucis, e que ao mesmo tempo desenrola e mostra ao povo a face de Cristo, a letra é tirada do livro das Lamentações do Profeta Jeremias. Ladeada pelas “três marias” que acompanharam Jesus naquele caminho, também vestidas de preto, na verdade, a Verônica canta um apelo de Nossa Senhora a todos nós: “O vos omnes qui transitis per viam, attendite et videte si est dolor sicut dolor meus” –“Ó vós todos que passais pelo caminho, atendei e vede se pode haver dor como a minha dor” (Lm 1,12). Outra particularidade é que cada passo dispõe de uma tela alusiva à passagem, algumas delas cedidas pela Paróquia da Candelária à família que o sedia, a qual é exposta enfeitada por cortinas, toalhas, tapetes, flores e velas para receber a procissão.
Chegando ao 3.º passo, que é na igreja do Bom Jesus, um sacerdote daquela comunidade profere o “Sermão do Encontro”, enquanto as duas procissões se unem, encontrando-se as imagens de Jesus e Nossa Senhora das Dores. Uma pregação vibrante contextualiza o povo naquele tocante momento. Daí as procissões seguem juntas até o Carmo, último passo, onde também há o “Sermão do Calvário”, proferido por um sacerdote aludindo à crucifixão de Cristo, e é dada a bênção com o Santo Lenho, encerrando-se o ato. Outrora ali se armava um grande Calvário para essa ocasião.
Sentido espiritual da velha tradição ituana
Como vemos, a Procissão de Passos é uma tradição muito bela da Semana Santa ituana, que deve ser preservada e valorizada por todos nós. Mais do que uma tradição, ela é uma oportunidade de meditarmos os últimos episódios da vida de Nosso Senhor, quando Ele derramou o Seu Sangue pela humanidade; “é uma das marcas mais fortes do sentimentalismo e do espírito da Paixão ituana. É um dos nossos elos tenazes de ligação com o período colonial” . Embora a procissão tristemente não aconteça em Itu neste ano em razão da delicada situação por que o país e o mundo passam, que cada um aproveite possíveis momentos de reclusão em suas casas para também meditar de modo especial nas verdades da fé que celebramos nesses dias, de modo a nos aprofundar mais nos sagrados mistérios da Paixão e Morte do Salvador.