A pandemia do novo coronavírus, a proteção de dados pessoais, as adequações na gestão, o uso da tecnologia virtual e as polarizações são alguns dos desafios que a atual presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) enfrentou nos últimos quatro anos. Mas a unidade e a colaboração permitiram a superação. Essa é uma das impressões partilhadas pelo bispo auxiliar da arquidiocese do Rio de Janeiro (RJ) e secretário-geral da CNBB, dom Joel Portella Amado, em entrevista de balanço da atual gestão. Para dom Joel, “uma alegria destacável foi a capacidade de enfrentar os desafios que surgiram”.
Dom Joel avaliou a gestão a partir de três frentes de atuação da CNBB: a evangelizadora, a gestão dos bens temporais e a do diálogo com a sociedade e o governo. Esses âmbitos conduziram e orientaram a ação da atual presidência, a partir da indicação feita pelo presidente, dom Walmor Oliveira de Azevedo, que definiu a gestão, a formação integral e o diálogo com a sociedade como princípios de atuação.
No campo evangelizador, destaque para a travessia do período da pandemia e a necessidade de compreensão do termo “comunidades eclesiais missionárias”. No âmbito da gestão, o destaque às transformações trazidas pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), as mudanças de gestão internas na Conferência. Sobre o diálogo, “foi preciso praticar intensamente a capacidade de diálogo”.
Sobre os pontos centrais e desafiadores para os próximos anos, dom Joel citou os já destacados na atuação da presidência e também os desafios sociais, os quais, “em algumas situações se agravaram, tornando-se humanitários: a fome, situações análogas ao trabalho escravo, espoliação do meio ambiente, aborto, entre outras”.
“Não há, na verdade, uma questão desafiadora, mas um conjunto de questões em torno da vida e da paz, concretizadas em uma Igreja comunhão de carismas e em uma sociedade efetivamente democrática”.
Dom Joel considera que “não são várias questões, uma ao lado da outra, mas uma única questão com diversas facetas”. Tudo está interligado e são alguns dos desafios para os próximos anos que, segundo dom Joel, valem para a CNBB e valem para a Igreja toda, em cada diocese, esteja onde estiver, em cada comunidade e mesmo em cada cristão e cristã.
Confira a entrevista na íntegra:
– Que aspectos o senhor destaca dessa gestão à frente da CNBB no período de 2019-2023?
Há vários aspectos a serem destacados. Para isso, podemos considerar algumas frentes de atuação da CNBB: frente especificamente evangelizadora, gestão dos bens temporais e diálogo com a sociedade-governo.
No campo especificamente evangelizador, destaco a travessia do período de pandemia. Houve não apenas o abalo, mas também a indagação se haveria mudança substancial no jeito de ser igreja. A questão mais importante foi a da relação entre presencialidade e virtualidade. Houve até mesmo quem afirmasse que, em razão do desenvolvimento dos recursos virtuais, a presencialidade já não seria mais tão importante. As reflexões e ações desenvolvidas pela CNBB ajudaram a perceber que a essência do cristianismo está na presencialidade. Afinal, o Verbo se fez carne, presença, história. A virtualidade é um instrumento, uma ajuda para que a presencialidade se fortaleça. Algumas pessoas acreditavam que surgiria um cristianismo vivenciado virtualmente. Isso, porém, seria um cristianismo excessivamente individualizado, sem o efetivo convívio. Na medida em que a única prioridade das atuais DGAE são as comunidades eclesiais missionárias, ou seja, pequenas comunidades onde o relacionamento humano primário é essencial, a presencialidade ganha a importância que precisa efetivamente ganhar.
Um segundo aspecto ainda dentro da ação especificamente evangelizadora diz respeito às já mencionadas comunidades eclesiais missionárias. Não foram poucas as vezes em que surgiu a necessidade de lembrar que este é um termo genérico, que, ao mesmo tempo, não se identifica com perfil algum de comunidade, mas que se identifica com todos os perfis, desde que sejam grupos pequenos, próximos à vida das pessoas, organizados em rede externamente com as demais comunidades, reconfigurando as paróquias, e, internamente, em diversos serviços e ministérios. É algo muito simples, mas nem sempre compreendido.
No âmbito da gestão dos bens temporais, ou seja, na gestão do patrimônio e nas relações jurídicas, atravessamos um período de muitas transformações. Dentre elas, não há como não citar a questão da proteção de dados, com a LGPD. Ainda não compreendemos todo o alcance dessa nova realidade. O primeiro momento de contato com essa realidade, momento que correspondeu praticamente ao quadriênio que agora se encerra, ajudou a compreender que estamos diante de uma realidade nova para a qual não estávamos preparados. Foi necessário, por exemplo, buscar peritos no assunto, conversar algumas vezes com os bispos e realizar até mesmo um encontro com as assessorias jurídicas das dioceses para tratar desses assuntos pendentes, dentre os quais a proteção de dados.
Ainda no campo da gestão, reconfiguramos internamente a Conferência, buscando uma gestão cada vez mais transparente e ágil. Fizemos uso dos mecanismos contemporâneos de administração, com ações e mecanismos muito simples, porém distantes da cultura eclesial. As AGMs, reuniões mensais com as coordenações dos setores, estabelecendo e revisando metas, e assim por diante. No âmbito financeiro, temos ao final de cada dia as informações necessárias. Também foi concretizada a gestão do CCM-Centro Cultural Missionário, como efetiva filial da CNBB, com gestão articulada, cujos resultados podemos já começar a sentir.
No terceiro âmbito, o das relações com a sociedade e o governo, como sabido, é missão da CNBB dialogar com a sociedade brasileira nas questões de nível nacional e com os poderes públicos em nível federal. A pandemia não gerou o quadro encontrado, mas agravou diversas situações, gerando, por exemplo, insegurança, incerteza e reações polarizadas. Foi preciso praticar intensamente a capacidade de diálogo. A presidência reuniu-se algumas vezes em formato virtual com os bispos. Conversou com regionais, participou de encontros e discerniu caminhos para a comunhão.
Não se pode deixar de mencionar o Pacto pela Vida e pelo Brasil, como serviço dialogal com a sociedade brasileira, serviço vivenciado em união com diversas entidades na defesa da vida e da democracia.
Estes são apenas exemplos nos diversos âmbitos.
– O que conduziu e orientou a ação desta presidência na condução da Conferência neste período?
Já no início do quadriênio, Dom Walmor indicou a gestão, a formação integral e o diálogo com a sociedade como princípios de atuação. Estas indicações foram assumidas e seguidas, produzindo os resultados que indiquei antes.
Além disso, não há como deixar de indicar a integração e a fraternidade vivenciadas entre os quatro membros da presidência e de toda a presidência com os bispos que tinham funções mais diretas na vida da Conferência, a saber, o CONSEP e o Conselho Permanente. Foi uma experiência muito rica.
– Aponte uma alegria, uma história ou algo que o marcou neste período como membro da presidência.
Uma alegria destacável foi a capacidade de enfrentar os desafios que surgiram: pandemia, proteção de dados, adequação da gestão, uso da tecnologia virtual, polarizações. Desafios novos são sempre desestabilizadores, mas a unidade da presidência e a indispensável colaboração do Conselho Permanente permitiram superar os desafios surgidos. Foi um grande aprendizado de diálogo, vivenciado em uma das maiores Conferências Episcopais do mundo, se não formos a maior quanto ao número de bispos e de circunscrições eclesiásticas. Uma das últimas alegrias foi a instalação da diocese de Araguaína, neste domingo, e a posse do seu primeiro bispo.
Outra alegria, se posso citar duas, tem sido a participação no Sínodo sobre a sinodalidade. Veja que não estou falando em preparação, mas em participação, pois já agora, ao preparar a sessão sinodal de 2023, estamos vivenciando a própria sinodalidade. É um caminho que se faz já concretizando a grande intuição do sínodo, que é a comunhão a serviço da missão.
Uma terceira alegria foi a construção, aprovação e promulgação do Estatuto da CNBB. Foi um processo de escuta das dioceses, com algumas contribuições, é verdade, que não se aplicavam ao Estatuto, que tem uma identidade bem específica, mas que serviram para estimular a mentalidade sinodal, que viria logo depois com o Sínodo.
– Como avalia a atual composição da presidência da CNBB com quatro membros?
Para mim, a questão não se encontra no número de membros, mas no modo como estes se relacionam. Como já indiquei antes, a fraternidade entre nós ajudou muito. O estilo de Dom Walmor para conduzir as questões, ouvindo as diversas vertentes das questões e valorizando o conhecimento especializado nas diversas áreas, ajudou muito. Também a divisão de serviços, envolvendo os dois vice-presidentes foi importante.
A mim, na Secretaria Geral, essa composição foi de grande ajuda, pois, sempre pude contar com o apoio direto e experiente de Dom Walmor, Dom Jaime e Dom Mário. E a amizade entre nós se fortaleceu ainda mais.
– Que pontos são centrais e desafiam a atuação da CNBB nos próximos anos?
O mundo está se transformando a passos muito largos. Questões novas surgem a todo momento. Questões antigas, que estavam como que adormecidas, estão voltando com um vigor que nos desafia. Algumas das questões novas eu já mencionei nas respostas anteriores, como, por exemplo, as ligadas à gestão dos bens, com firme transparência, conforme nos tem orientado o Papa Francisco.
Além disso, permanecem os desafios sociais, que, em algumas situações se agravaram, tornando-se, como insisto em dizer, humanitários: fome, situações análogas ao trabalho escravo, espoliação do meio ambiente, aborto, entre outras. A Igreja sempre compreendeu essas situações como formas de agressão à vida, que precisa ser incansavelmente defendida, desde a concepção até a morte natural. Essa expressão precisa ser reiterada e concretizada.
Não há, na verdade, uma questão desafiadora, mas um conjunto de questões em torno da vida e da paz, concretizadas em uma Igreja comunhão de carismas e em uma sociedade efetivamente democrática. Como diz um canto bastante conhecido, “tudo está interligado”. Assim nos vem insistentemente ensinando o Papa Francisco, principalmente a partir da Laudato Si’: não são várias questões, uma ao lado da outra, mas uma única questão com diversas facetas. Precisaremos, por certo, aprender a trabalhar em comunhão, unindo forças.
Em tudo isso, fica, a meu ver, o desafio que nos será trazido pela Campanha da Fraternidade de 2024, a primeira do próximo quadriênio, que tratará da relação entre a fraternidade e a amizade social. Trata-se de enfrentar não esta ou aquela questão, não um aspecto pontual da problemática social vivida, mas de nos perguntarmos para onde vai a sociedade brasileira e mesmo mundial, se rumará para a aguda individualização de tudo ou se para a comunhão, a fraternidade, a articulação, no caso, em redes, uma figura que também aprendemos a valorizar. Em meio a tantas oposições e polarizações, em meio a feridas que atingiram famílias e comunidades, o desafio da reconciliação é imperativo na reconstrução da comunhão.
Logo no primeiro ano do próximo quadriênio, celebraremos a primeira sessão do Sínodo sobre sinodalidade. A meu ver, trata-se de um momento importante para refletir sobre a comunhão como característica irrenunciável da Igreja e mesmo de todo ser humano.
Estes são alguns dos desafios para os próximos anos. Valem para a CNBB e valem para a Igreja toda, em cada diocese, esteja onde estiver, em cada comunidade e mesmo em cada cristão e cristã.