O Povo da Palavra Encarnada
O mês de setembro, tradicionalmente, no Brasil, é dedicado à Palavra de Deus. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) promove, todos os anos, por essa ocasião, um momento oportuno de reflexão sobre a centralidade da mensagem da Bíblia em nossa fé. Para nós, cristãos, a Palavra se fez carne e, justamente por isso, toda leitura das Sagradas Escrituras deve ter como fundamento a vida, paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo. Nele, os textos sagrados deixam de ser apenas letra ou literatura, mas transformam-se em realidade, assumida até o fim pelo Filho de Deus. Não somos o povo de um livro, somos o povo de Deus que se reconhece no Verbo encarnado, Jesus de Nazaré! Por isso, nossa leitura da Bíblia tem um olho no texto e outro na realidade. Viver o mês da Palavra de Deus nessa lógica é superar as tentativas de apropriação das Escrituras feitas por aqueles que a manipulam em benefício próprio. Trata-se de viver a experiência do texto a partir de uma leitura sensível às dores e exigências de nosso tempo. De fato, a Bíblia não é um livro de histórias sobre o passado, mas um evento vivo para o nosso hoje e suas necessidades.
É nesse sentido que, neste ano de 2024, a CNBB nos convida a lermos e meditarmos o livro de Ezequiel, a partir do tema: “Porei em vós o meu Espírito, e vivereis!” (Ez 37,14). Trata-se de vivermos a experiência do profeta que, mesmo em meio ao exílio, não perde a esperança e anuncia a chegada de um novo tempo. Esse tempo se realiza no novo povo de Deus, que somos nós! Desse modo, somos chamados a ler a sua Palavra não através da lógica fundamentalista, que transforma as Escrituras em instrumento de poder e opressão, “ressecando” a alma do fiel e transformando-o num soldado solitário de um exército de ossos. Somos chamados a recobrar nosso corpo de carne, vivo e relacional, alegre e disposto a retomar a Bíblia daqueles que insistem em fazer prevalecer o Vale da Morte. Viver a Palavra de Deus é proclamar a vitória do Espírito que reanima de esperança nossa história, realmando nossas estruturas para edificarmos juntos o Reino que há de vir.
O profeta Ezequiel exerceu seu ministério durante o exílio da Babilônia, provavelmente entre os anos 593 e 571 a.C. Foi um período difícil para o povo de Israel, pois longe de sua terra e afastado de suas práticas religiosas do templo, em Jerusalém, teve que se adaptar a uma realidade diferente e distante daquilo que entendiam como o verdadeiro culto a Deus. O próprio profeta era um sacerdote do Templo, sua missão teria que ser reinventada. Nesse sentido, Deus lhe confere várias visões, que podem ser encontradas no decorrer do livro. Assim, o profeta se configura como aquele que enxerga para além das agruras do sofrimento presente, aquele que vê de cima, e não se reduz ao tamanho das dificuldades impostas. Se, para muitos, o cumprimento da Lei estava associado à prática estrita das exigências ritualistas, o profeta sabe enxergar a ação de Deus mesmo nos momentos de exílio, mesmo nas intempéries que a vida traz.
A perícope escolhida como tema para o mês da Bíblia deste ano traz a figura de Ezequiel conduzido ao vale dos ossos secos (Ez 37,1-14). O próprio Senhor levara o profeta para um lugar tenebroso, onde os ossos estavam espalhados. Ali, Deus, em primeiro lugar, fez com que Ezequiel se movesse em torno dos ossos, por todos os lados. Essa é a primeira exigência do Senhor: perceber a realidade! Percorrer o lugar da dor, sentir o real não apenas com ideias, mas com os olhos, é o primeiro passo daquele que é movido pelo Espírito. O profeta pisa o chão dos ressequidos, padece a dor daqueles que perderam a esperança. Em seguida, Deus promete a Ezequiel que levantaria aquele exército. Destaco aqui o modo como o Senhor recompõe o seu povo: primeiro ele junta o que estava dividido. “Os ossos se aproximaram” (Ez 37,7) e só depois ele os revestiu de tendões, carne e pele.
De fato, nada resseca mais a alma de um povo do que a divisão. Assim foi com os israelitas, divididos pelo exílio. Assim também acontece conosco, quando uma leitura distorcida da Bíblia transforma-se em instrumento de divisão. Onde a ânsia pelo poder se torna a meta principal, a carne se esvai e a unidade arrefece. Penso aqui em tantas pessoas seduzidas pelo discurso fundamentalista a partir das Sagradas Escrituras. Pessoas que pouco a pouco foram manipuladas a enxergar no outro um adversário, um inimigo. Penso ainda nas pregações com conteúdo sectário disseminadas pela internet. Naqueles que se promovem usando a Bíblia para desunir. Nesse vale de tristeza que as ambições humanas nos lançam, o ressequimento desconsidera a ciência, justifica as injustiças e consagra a intolerância. Trata-se da apropriação do texto sagrado pelos interesses políticos, que transformam pessoas em exércitos de ossos perambulantes. Há que se verificar, nesse mês da Bíblia, se em nossas comunidades isso também está acontecendo.
Trago aqui uma frase de um grande biblista, Frei Carlos Mesters: “Quando o texto é tirado de contexto, ele vira pretexto!” Quando a leitura cega da Bíblia se reveste de estratégias de domínio, deixamos de reconhecer o irmão como “carne de nossa carne” e o que sobra são os ossos da indiferença, justificados pelo pretexto do poder a todo custo.
Todavia, Ezequiel é chamado a profetizar. Ele convida o povo que estava dividido e cabisbaixo a olhar para cima e a sair dos túmulos. Conforme realiza sua missão, ele vê os ossos se juntando, revestindo-se de carne e pele e ficando em pé novamente. Isso só é possível pois o autor de toda profecia é o próprio Espírito de Deus. Ele é o sopro vital que junta o que estava distante, que faz aparecer a carne onde só havia ossos. Ele humaniza para divinizar. Traz vida para multiplicar. A ação do Espírito em nossas comunidades é essa força regeneradora de Deus que levanta os ânimos e faz acreditar novamente. Trata-se daquilo que dá sentido ao que estava sem esperança. O mês da Bíblia em nossas comunidades tem essa força de realmar o povo com a presença real do Senhor nas Escrituras. Trata-se de fazer perceber que em cada pequeno grupo que se une para ler e refletir sobre a Palavra há a ação do Espírito. Por isso, é fundamental resgatar o sentido comunitário da leitura da Bíblia. Um exército de carne e espírito não precisa marchar. Precisa caminhar. Para que a Bíblia não fique refém de discursos ideológicos e fundamentalistas, é preciso resgatá-la para o centro da vida do povo. É isso que o Espírito Santo faz: infunde nos corpos de carne um hálito de vida. Ele levanta os desanimados e os faz crer que um outro mundo é possível. Na força das comunidades que persistem, o próprio Deus se manifesta!
Por fim, recordo que, para nós, cristãos, a Palavra se fez carne. Por isso, convido a todos, neste mês da Bíblia, a meditarem as Escrituras sob um viés sempre cristológico. Cristo deve estar no centro. Ele é a chave principal de interpretação de todo texto sagrado. No Messias de Nazaré, toda profecia de Ezequiel se realiza, pois Ele é o próprio doador do Espírito. Assim, reconhecer nas Escrituras o percurso que o povo trilhou para a mensagem plena da Revelação em Jesus é uma tarefa que podemos realizar juntos no mês da Bíblia. O Senhor se revelou a nós não como uma ideia abstrata, mas como homem. Na humanidade perfeita de Jesus vemos o modelo para nossa vida. Por isso, a leitura das Sagradas Escrituras deve também nos fazer preencher de sentimentos humanos mais nobres, como a compaixão, a caridade, o respeito. É nesse sentido que o texto lido transforma-se na fé vivida. Só assim a Palavra continuará encarnando-se em nossa história.
Convido todo povo a fazer deste mês da Bíblia um momento oportuno de mergulhar no coração da Palavra de Deus. Mais do que isso, convido a todos a permitirem a ação do Espírito e deixarem-se revestir pela humanidade plena de Jesus. Para que sejamos mais do que ossos ressequidos, mas um povo de carne. E que neste tempo de vale de ódio, o Espírito do amor nos levante e nos fortaleça.
Sejamos o Povo da
Palavra Encarnada!