A última porta aberta

por Altair José Estrada Junior
Andar pelas ruas de Itu, pra mim, sempre foi motivo de enorme prazer. Notadamente por seu centro histórico, onde nasci e vivi a maior parte da minha vida.
É bem verdade que muitas vezes fico com o coração apertado ao ver tantas casas e prédios darem lugar aos malfadados estacionamentos e aos insossos galpões comerciais, construídos sem qualquer compromisso com o estilo da cidade histórica. Mas, ainda assim continua sendo gratificante percorrer aquelas ruas e praças quadricentenárias, que preservam um traçado praticamente original. É muito bom caminhar vagarosamente pelo centro e observar um ou outro morador à porta ou janela de casa apreciando o movimento e cumprimentando os que passam, às vezes mesmo sem os conhecer. São os que resistiram à evasão residencial para bairros e loteamentos fechados, que impropriamente chamam de “condomínios”. Não menos prazeroso é observar imóveis construídos em séculos passados, a espessura de paredes de taipa, entalhes em portas e janelas, beirais de telhados e detalhes de acabamento feitos num tempo em que a beleza e o esmero eram condições essenciais a se construir o que quer que fosse.
Embora dolorido, não deixa de também ser agradável a lembrança de pessoas, casas e casarões, e até de comércios que já não existem e que, pela memória e saudade, são como se ali ainda estivessem. O subir e descer ruas transforma-se numa relação de carinho para com o pedaço de chão que nos viu nascer e crescer e com o qual nos identificamos como pessoa e cidadão. As palmeiras centenárias do largo do Carmo, cujo corredor majestoso conheci completinho; a imponente fonte luminosa de um lado da praça, com seus jatos d’água dançando aos acordes das músicas orquestradas, e o laguinho de peixes de outro lado, com seu bucólico chafariz no meio; as batidas do relógio da matriz, à época ainda movido a corda; o becão calçado de varvito e ladeado de sobradões, onde à tarde brincávamos e apostávamos corrida de bicicleta; as igrejas, uma mais bonita que a outra… Tudo compõe esse universo de recordações que nos mantém ligados à cidade que amamos e é parte essencial de nossas vidas.
Mas, uma das lembranças mais marcantes que tenho é a da quantidade de casas que, dotadas de uma segunda entrada ou de um anteparo, mantinham suas portas abertas para a rua o dia todo!
Achava aquilo extraordinário! Na Floriano Peixoto, lembro-me da casa de Da. Emília Camargo, exímia professora de datilografia, e da família Arruda, hoje transformada numa horrorosa loja de sapatos em que somente detalhes da fachada foram mantidos. O sobradão dos Bispo na esquina com o becão, a casa das irmãs Moreira nos baixos do largo do Bom Jesus, e dos Simeira, ali mesmo, na esquina. E a casa da família De Francisco, alguns metros depois. À época já eram remanescentes de casas cujas portas eram abertas todos os dias de manhã e assim permaneciam durante o dia. Lembro-me, ainda, da porta aberta da casa dos Fratini, na Barão do Rio Branco, do Dr. Olavo Silva Souza, que também dava acesso ao seu consultório médico, e da família Carneiro, pra cima do Cine Marrocos. No largo da Matriz havia os casarões das famílias Dias Aranha e Jabur, e na Sete de Setembro a do Sr. Zico de Mattos, da Chácara do Rosário. Havia ainda algumas portas abertas na rua dos Andradas, como a da família Sampaio, na Santa Rita, onde eu morava, e Santa Cruz, rua de meus avós.
E, finalmente, a casa do professor João dos Santos Bispo e de sua esposa, dona Laura Cintra Bispo, ele falecido e ela, nonagenária, que até hoje mantém esse costume. Situada na Barão de Itaim, em frente à antiga Prefeitura, é a única residência no centro de Itu que, desafiando a modernidade e a paranoia de segurança e medo que tomou conta das pessoas, abre suas portas de manhã e só fecha à noite, às vezes tarde da noite, período em que o saguão é invariavelmente iluminado pela luz de uma arandela.
A porta aberta da casa dos Bispo – a última da cidade – é uma clamorosa testemunha de um passado bonito, em que as pessoas confiavam mais umas nas outras, as famílias se conheciam e se visitavam, e não se tinha de viver atrás de tantos muros, grades, câmeras e alarmes. Cem vezes eu passe em frente àquela casa, com suas portas abertas como a convidar para uma visita, uma proza ou um cafezinho, cem vezes vejo-me transportado a esse tempo em que a vida parecia mais simples. Em que se primava por valores humanos e afetivos que as gerações de hoje, infelizmente, parecem desconhecer. Vida longa a dona Laura!