O aborto: entre a lei e a moral
O recente empenho em torno da descriminalização do aborto no Brasil tem suscitado intenso debate que exige discernimento. As posições não são apenas polêmicas, pois acarretam uma responsabilidade enorme diante do que se decide. Além de questões éticas e científicas, são indispensáveis as consequências morais de uma descriminalização desse âmbito.
Naturalmente, tenta-se, de todas as formas, prescindir de que religiosos emitam seu parecer argumentando que o Estado é laico. Ora, o princípio da laicidade é importante, e o laicismo é uma ideologia que tenta desqualificar qualquer um que proponha valores que critiquem posições definidas por falta de fundamentos sobre o sentido integral da vida. Isso inclui a transcendência.
Para refletir sobre a relação entre lei e moral, no caso da descriminalização do aborto, recorro, mais uma vez, ao subsídio doutrinal n. 13 da CNBB, que trata do tema, dedicando-me a recuperar os parágrafos que se referem a esse tema.
Uma das funções do Estado é a promulgação de um ordenamento jurídico no qual a vida é defendida desde a fecundação até o seu fim natural. Entretanto, alguns regimes democráticos, diante das reivindicações da modernidade, assumiram como valor praticamente absoluto o direito à liberdade individual. Assim, para definir o ordenamento jurídico, o legislador não procura a verdade e o bem a serem promovidos, mas recorre ao consenso ou contrato, baseado nos valores que, em um determinado momento, podem satisfazer a maioria das liberdades, constituindo, assim, ao mesmo tempo, um contratualismo ético e um positivismo jurídico sem base na lei natural.
Como a lei é um contrato, ela pode ser mudada ou interpretada segundo quem detém o poder de assim o fazer. Dessa forma, abre-se espaço para o ativismo dos grupos que, por lobby, garantem a aprovação de leis contrárias segundo concepções ideológicas ou por conta da pressão de grupos de influência.
No caso da descriminalização do aborto, abandonou-se a verdade sobre o valor pessoal de cada ser humano desde a fecundação, afirmando não ser possível determinar o início da vida humana. Depois, passou-se a relativizar o direito fundamental à vida, não considerando o embrião como pessoa humana, e a relaxar, sempre mais, as leis contrárias ao aborto. Enfim, surge uma legislação sempre propensa a aceitar legalmente os atos abortivos e uma jurisprudência que tende a favorecer, em médio ou longo prazo, ou a legalização do aborto ou, ao menos, a sua despenalização.
A vida do nascituro possui um valor intrínseco, não instrumental, que independe da satisfação de interesses ou necessidades de terceiros. Esse posicionamento pode ser assumido tanto por pessoas que professam alguma fé quanto por descrentes e ateus. Não se trata de uma questão legal, pois sua natureza é de sentido moral. O fato de a prática abortiva ser legalizada em diversos países, sobretudo naqueles chamados desenvolvidos, não significa que se tenha resolvido ou chegado a um ponto pacífico sobre o problema ético, que constitui o centro da polêmica. A legalização de tal procedimento por parte do Estado não redime nem altera, de forma alguma, o caráter intrinsecamente mau da ação.
O caráter legal de uma ação jamais é critério válido para definir seu caráter moral e ético, e o que deve ocorrer é justamente o contrário, pois a verdade ética e moral não pode ser simplesmente “criada” por uma corte judicial; não é produto da opinião de uma maioria.
Contra qualquer tipo de legislação que promova o aborto, afirma o Papa Francisco: “Os nascituros são os mais inermes e inocentes de todos, a quem hoje se quer negar a dignidade humana para poder fazer deles o que apetece, tirando-lhes a vida e promovendo legislações, para que ninguém o possa impedir. Muitas vezes, para ridiculizar jocosamente a defesa que a Igreja faz da vida dos nascituros, procura-se apresentar a sua posição como ideológica, obscurantista e conservadora; e, no entanto, esta defesa da vida nascente está intimamente ligada à defesa de qualquer direito humano.” (EG, 213).