A última tia
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Os amigos costumam dizer que as minhas tias eram uma instituição, sete irmãs unidas pela família, pelos interesses comuns, gente talentosa e engraçada, de emoções à flor da pele, generosidade imensa que meus primos, meus irmãos e eu desfrutamos, na velha casa, palco da existência de uma geração que acabou no sábado com a morte da última delas, tia Dirce.
As De Francisco formavam um conjunto interessante: vocação artística, liderança pela educação, conforto na religião; tudo isso de maneira intensa, todas juntas; mesmo depois de casadas, frequentavam a casa-mãe diariamente. Outro ponto de união era a igreja do Bom Jesus: cantaram no Coro durante décadas, marcando um sentido da existência através da interpretação, do gosto musical, da prática da religião pela arte. Foi um privilégio, para mim, iniciar a trajetória musical como organista e regente delas. O Coro foi o seu grupo de jovens, na década de 1940, a turma de amigos que atravessaria longa existência; era também o desafio na interpretação de repertório europeu, inclusive de difícil estrutura modal: quando eu já estava na faculdade é que me dei conta que minhas tias cantarolavam polifonia da alta renascença cuidando da casa!
Eram múltiplas as suas atividades na igreja: arrumavam altares, ensaiavam crianças para a coroação de Nossa Senhora, participavam da diretoria das associações, dirigiam campanhas para reformas da igreja e pontificavam no coro aplaudidas pela comunidade.
Tia Dirce era das mais novas. Depois de formada na Escola Normal do Colégio Nossa Senhora do Patrocínio, lecionou dois ou três anos em Porto Feliz; retornou a Itu, à escola onde estudara, o Cesário Mota, no qual aposentou-se. Foi minha professora na quarta série: pererequei com os cadernos de caligrafia! Era enérgica e organizada, ensaiava peças teatrais, jograis, cânticos, estimulava a leitura. Ela me entregou o diploma na formatura do ginásio. Viveu cercada por esse ambiente: a escola era extensão da igreja porque no Cesário Mota éramos levados à vida religiosa.
Depois de aposentada tornou-se catequista e ministra extraordinária da Eucaristia; de missa diária, participou novamente do Coro quando o recriamos, em 2014. Enquanto tiver forças, prometo mantê-lo vivo! A sua voz de contralto fica gravada na minha memória musical.
A pandemia, que tudo mudou, fez a tia Dirce se tornar mais caseira, vivendo as limitações de seus 90 anos, antenada nos canais católicos de TV e com a gente pelo whastApp.
Com fé, soube aceitar as perdas na família: a última de dez irmãos inseparáveis; no mesmo ano morreram o marido, Cavalcante, com quem viveu mais de sessenta anos, e o filho único, Luís Augusto. As alegrias da vida tornaram-se a neta e as bisnetas! Ela realmente adorava crianças, tinha prazer em acalentar, brincar, fazer o gosto. Agradeço a amizade e o carinho dessa tia curiosa, de humor tragicômico e divertido. Facilmente fazia-se de vítima para a gente rir.
O Largo do Bom Jesus começa agora uma nova história, a última moradora encerrou a jornada.
Nesta primeira sexta-feira, vamos cantar também em sua memória!