Aconchego, saúde e paz

A temperatura por assim dizer, nem se fez friorenta em excesso, nem favoreceu à sua elevação propriamente dita. Frustrou a ida precipitada das senhoras e mocinhas ante a oferta do vestuário, bem discreta perante a indecisão do clima.
Já ao sexo masculino se diria ser praticamente nula qualquer preocupação, pouco ou nada sensíveis a uma obrigatoriedade nos seus hábitos costumeiros. As exceções existem sim, poucas contudo.
As viagens de recreio propriamente ditas, essas se fazem indiferentes a mutações de clima, mormente da parte dos de meia idade e idosos assumidos em especial.
O senhor Benedito, por exemplo e que não gostava do próprio nome, fazendo-se chamar apenas de “seu Brito”, não perdoava ano nenhum sem retirar-se para bem longe, desde que nevasse por lá. Apaixonado confesso. Entre 15 de junho e 15 de julho, trinta dias sagrados, acompanhado naturalmente da esposa Dona Áureas, essa de si com pouco interesse pela frigidez do inverno. Mas o acompanhava.
Há que se falar, pois, da expandida rede comercial “Brito Automóveis”, distribuída por dezesseis diferentes filiais, país afora. Curiosamente, a partir de um bom tempo de crescente evolução, o “seu Brito”, pouco habituado a repartir ideias e planos temperamento espontâneo e discreto, mas de admirável tino administrativo concebeu uma inovação adequada a aprimorar ainda mais o controle de seu crescente empreendimento.
É evidente que à testa de cada uma das lojas, mantinha um gestor competente e de alta confiabilidade, cuidado primário e indispensável, justamente nessa particularidade o arcabouço de sua matriz e filiais.
Mas aos dois filhos, Mauro e Egberto, 25 e 27 anos respectivamente, solteiros, incumbia-lhes rodiziarem-se continuamente em visitas a cada uma das lojas, em sequencias desconexas, aptos portanto a se apresentarem sempre de improviso. Com funções mais amenas, contava-se ainda com a supervisão da Irmã Clarice, 31 anos ligada ainda a um noivado de futuro incerto. Esta, porém, radicada apenas aos negócios da matriz, uma participação quase que simbólica. Preenchia bem mais o seu tempo, em frequentes passeios e viagens, na companhia da genitora. O noivado, ah o noivado, estiolou gradativamente até ser desfeito de vez.
Num dos finais de semana, no jantar, costume da família, eis que todos ali, Mauro se socorre do guardanapo, limpa os lábios e, titubeante, tenta explicar que pretendia se esmerar no atletismo e fazer carreira na área. Não precisa explicar. Pasmo geral.
Dona Áurea se afoga. Não por estrem indignados, lentamente, e um de cada vez, um a um, se levantaram.
No domingo de manhã, à hora do café, pai e filho quedaram-se à mesa e todos entenderam e saíram calados. “Seu Brito”, apoiou sua mão no ombro do Mauro e, porque amava aos filhos todos, explicou que compreendia aquela decisão. A esse tempo, na imprensa local e as vezes na capital, já era algo comum e cada vez mais constantes notícias dessa natureza, de admiração aos feitos atléticos do Mauro.
Em princípio, na condição de mera experiência, colheu-se então do próprio quadro de funcionários o dedicado e serviçal, sr. Maurício, que, acertadamente correspondeu e galgou assim tão importante responsabilidade.
Pessoas gradas, os dois filhos, despertavam anseios das moças casadoiras, mas eles deixavam claro que casamento ainda não seria opção deles. Mesmo assim eram queridos nas rodas dos solteiros, homens e meninas.
Atleta de alto coturno, Mauro passou a ser admirado em todos os países, ora aqui, ora acolá e chagava a ausentar-se meses e meses. Ano houve que sequer no Natal conseguiu estar com os seus.
Com o decorrer tempos todos, “seu Brito”, vencido pela idade, sob comoção geral, faleceu. Sequer no seu enterro, houve tempo de Mauro estar em casa. Já a esposa, a filha e o Egberto, mudaram-se para uma casa nem tão grande.
A essa altura, os três comunicaram-se com o Mauro para informar a alienação do conglomerado das lojas todas. Consciente, embora surpreso, na hora e sem suspense, o filho e mano atleta até elogiou tal decisão.
Egberto no início perdeu-se um pouco com tanto tempo à disposição, empreendeu viagens ligeiras por toda América do Sul. Nesse vai-e-vem finalmente seu coração acedeu a uma mais menina moça, linda sobretudo. Em menos de dois anos, casaram-se, com o consequente fruto de um casal de gêmeos. Propositadamente, instalaram-se em enorme chácara, dentro da zona urbana e com casa menor no mesmo “sítio” vieram morar mãe e filha.
Ao enfraquecimento físico e idade algo exacerbada, dona Áurea veio a falecer confortada com os últimos sacramentos, aliás as mesmas condições do falecido esposo.
Pois justamente à saída da missa de sétimo dia e ao serem apresentados às pessoas enlutadas, Egberto ao rever amigo de muito tempo, convidou-o a vir visitá-lo, com tantas lembranças dos tempos de solteiros. Áureo, o seu nome, aceitou de pronto.
Não poderia ter acontecido encontro mais feliz. Horas e horas, os dois num canto da sala, e as duas respectivas esposas a chamá-los repetidamente. Houve instante até em que ficaram em pé e distraidamente sentaram-se de novo.
Já sentados à mesa, Egberto disse ao Áureo;
– Conte para elas.
– Fale você, que a casa é sua.
Aí Egberto falou. Conversa vai, conversa vem, nós dois porque aposentados, decidimos a prestar serviços a uma creche que, pelo jornal, reclamava por mais colaboradores.
Assim foi feito.