Gratidão e saudade
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Não fui um bom aluno. Excessivamente preguiçoso, não via sentido na maioria dos conteúdos; interessavam-me, somente, a literatura, as artes e o passado. Creio que o ambiente doméstico proporcionava excelente apoio ao gosto pessoal. Quando eu estava no 2º ano do curso primário, minha mãe, com certa dificuldade, adquiriu a Enciclopédia Britânica e a obra completa de Monteiro Lobato. Esse material acompanhou a minha curiosidade e formação paralela aos estudos escolares. Em casa, tínhamos A Folha de S. Paulo, diariamente, além de semanários, como A Federação e a revista Veja e outros mensais. O investimento proporcionado por minha mãe, fazia absoluta diferença na ampliação da visão de mundo e na cultura geral.
Ela se interessava pelas minhas leituras e formação artística. Fui para o conservatório aos seis anos, antes mesmo de saber ler; adquiriu um órgão eletrônico para eu estudar, estimulou que fizesse o curso superior de música, quando a maioria dos pais queriam filhos advogados, médicos ou engenheiros. Eu não concluí o curso, migrando para a História, mas tenho me exercitado nas artes, graças também à herança que recebi dela mesma, cantora no Coro do Bom Jesus, com notável gosto musical.
Aos domingos pela manhã, minha mãe privilegiava os “concertos para a juventude”, exibidos na televisão. Assistíamos juntos. Ela me fazia perguntas sobre compositores e obras, estimulando a pesquisa, compreensão e desenvolvimento do gosto. Levou-me a concertos e, pelas mãos dela, é que mergulhei nesse universo.
Ela buscava cumprir o papel de mãe-pai, de fazer-nos conhecer o melhor do mundo, ela que tivera pequenas oportunidades, mas soube aproveitá-las.
Para minha mãe, a vida se impôs com dificuldades: ficou órfã aos seis anos. Pelas mãos da avó, que a criou na fazendinha da família, em Gravatal (SC), ela conheceu a vida rural por completo. Frequentou a escola disponível; quando não havia outras séries, meninota ainda, continuou como assistente da professora, porque não queria deixar os estudos.
Depois ela se mudou para Itu, a fim de ajudar na casa dos tios, onde veio viver a avó. Já madura, matriculou-se no Colégio Patrocínio. Foi a fase mais prazerosa da sua vida; fez grandes amizades, estudou com afinco e tornou-se professora pela Escola Normal. Lecionou em diversas cidades, a última, Itu.
Minha mãe se casou, mas durou pouco; grávida do terceiro filho – a única menina – ficou viúva. Reconstruiu a vida, casou-se novamente, veio o último filho e, logo, a segunda viuvez que interrompeu o curso superior, tão desejado. Minha mãe tinha uma capacidade enorme de superar crises e retomar o rumo. A fé a manteve sempre disposta. Depois de aposentada, conheceu o mundo, viajou, leu muito, sempre ligada às artes.
A última saída de casa, em março de 2020, foi para cantar na igreja, como fazia desde menina. Depois veio o tempo da pandemia: reclusa, não perdeu o bom humor, a vontade de viver, sempre com a discreta e conhecida elegância.
Minha mãe viveu noventa e sete anos bem: escreveu acrósticos e memórias, colecionou amizades e manteve a serenidade.
Na próxima segunda-feira, dia 10, dona Avacy completaria cem anos. Sou imensamente grato ao que ela me proporcionou. Eu vivo cercado de livros, histórias e músicas, tentando ser um pouco do que ela me ensinou e ofereceu.

Saudade!