As estações quaresmais
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Um aspecto interessantíssimo da Liturgia Católica são estações romanas, que caracterizam as principais celebrações do calendário litúrgico. A palavra estação – statio, em latim – vem da terminologia militar e significa originalmente “posto de guarda”, como atesta Tertuliano († 220) em seu tratado sobre a oração (De oratione): “Statio de militari exemplo accepit, nam et militia Dei sumus” – “A estação recebe o nome do exemplo militar, porque também somos o exército de Deus”. Ao reunirem-se em determinada igreja para uma solenidade, mesmo que espiritualmente, os cristãos se consideravam como soldados de Cristo.

O costume de se eleger uma igreja romana para as grandes celebrações é muito antigo, remonta o século IV. Segundo o liturgista Pe. João Batista Reus S.J., autor do festejado “Curso de Liturgia” (Editora Vozes, 1952), “O clero reunia-se numa igreja determinada (collecta) e ia em procissão, cantando ladainhas, para a igreja da estação. Essas procissões serviam para aumentar uma solenidade, por ex., na páscoa; mas, as mais das vezes, tinham o caráter de penitência, como na quaresma ou nas quatro têmporas”. Foi o Papa São Gregório Magno, grande reformador da Liturgia, quem mandou marcar no sacramentário (hoje missal) os dias e lugares das estações.

Assim é que as principais datas do calendário – notadamente as festas de Nosso Senhor – são celebradas em determinada statio. Embora participando da santa missa em nossa cidade e paróquia, é como se estivéssemos reunidos naquela igreja romana, onde o Papa nos primórdios do cristianismo também celebrava, sob a proteção de seu padroeiro estacional. Uma bonita tradição que realça a unidade da Santa Igreja em torno do mistério celebrado.

Os domingos do Advento, as celebrações do Natal e da Epifania, da Ascenção e de Pentecostes, as oitavas privilegiadas e as quatro têmporas possuem suas estações romanas, mas talvez as mais significativas são as estações quaresmais, previstas para todos os dias da Quaresma e do Tríduo Pascal, da Páscoa e de sua Oitava. Sobretudo nas estações quaresmais os cristãos, armados com as “armas da penitência” (oração, jejum e esmola), são particularmente chamados à vigilância, atentos à exortação do próprio Senhor: “Vigiai e orai para que não entreis em tentação” (Mt 26,41).

Como se disse, já no século IV as stationis, entendidas aqui como a celebração litúrgica presidida pelo Papa, bispo de Roma, começaram a ser praticadas nas principais igrejas da cidade nas quartas, sextas e sábados da Quaresma, dias estreitamente associados à Paixão de Cristo: a quarta-feira, segundo a tradição, seria o dia em que Judas decidiu entregar Jesus; a sexta-feira é, naturalmente, o dia da crucificação; e o sábado é o dia em que o Senhor permaneceu no sepulcro. “Uma particularidade ritual expressava a íntima união entre a Liturgia estacional e toda a comunidade cristã de Roma: no momento da fração do pão (…), os presbíteros que participavam da statio, recebiam das mãos do Papa o fermentum, um fragmento do pão consagrado que levavam reverentemente às suas tituli (igrejas titulares), onde celebravam a missa para os fiéis que não puderam participar da Liturgia estacional, e só então comungavam.

Da mesma forma, se o Papa não podia estar presente à statio, um acólito lhe levava as saudações da igreja estacional do dia e um curioso símbolo de comunhão: um pouco de algodão embebido no óleo das lamparinas da igreja. Esse algodão era guardado e usado para preencher a ‘almofada fúnebre’ do Papa, sobre a qual repousaria sua cabeça no sepultamento.” (http://pilulasliturgicas.blogspot.com)

Nos nossos dias, o crescimento da cidade já não permite a presença do Papa na maioria dessas estações. Mesmo assim, é tradição que o Sumo Pontífice abra o tempo da Quaresma na estação da quarta-feira de cinzas, que é a Basilica di Santa Sabina all’Aventino, igreja-mãe da Ordem dos Dominicanos. Outra estação celebrada pessoalmente pelo Papa é a quinta-feira santa, ad S. Joannem in Laterano, sua catedral. Nos demais dias da Quaresma geralmente a missa na respectiva igreja estacional é celebrada pelo cardeal titular (ou pelo cardeal arcipreste, no caso das quatro Basílicas Maiores). O clero e os fiéis reúnem-se numa outra igreja ou local e dirigem-se em procissão até a igreja titular para a missa, cantando sobretudo a Ladainha de Todos os Santos e recitando os salmos penitenciais.

Entre as estações quaresmais, algumas são bastante curiosas, como a de San Trifone in Posterula, no sábado depois das cinzas, cujos textos da missa permitem concluir que foi composta em tempo de calamidade pública em Roma, possivelmente uma inundação do Tibre ou alguma peste. Também inspiraram a escolha do evangelho da missa a Statio ad S. Anastasiam, na primeira semana da Quaresma, cuja procissão passava pela feira de gado, pelo “barulho que se ouvia e o espetáculo de interesses materiais”. No terceiro domingo, com Statio ad S. Laurentium extra muros, os catecúmenos que se preparavam para os escrutínios batismais eram apresentados a São Lourenço, seu padroeiro. Já a igreja estacional de S. Eusebium, situada no meio de um cemitério, provavelmente influenciou a escolha das leituras da sexta-feira da quarta semana.

O domingo da paixão é celebrado em São Pedro, sobre o local onde o Apóstolo seguiu o exemplo do Mestre, morrendo na Cruz, e a sexta-feira santa na Basílica de Santa Cruz em Jerusalém, que representa a Cidade Santa e guarda uma das principais relíquias do Santo Lenho. O domingo da Páscoa – não poderia ser diferente – é celebrado em Santa Maria Maior: depois de tão tormentosos sofrimentos de Maria Santíssima, é a ela que a Igreja se associa, em especial, para bradar as alegrias da Ressurreição.